E eis que me pego pensando no tempo das confissões comunitárias de minha juventude, conduzidas pelo inesquecível Mons. Raimundo Gomes Barbosa, nas tardes das quartas-feiras santas, de Santa Cruz - RN. Estou ficando velho e sei que a nostalgia, as rugas, os cabelos brancos, as dores aqui e acolá, o entrevamento, a rede surrada e o Vick Vaporub fazem parceria com a velhice. Temo que essa nova companheira, a nostalgia, já me bate à porta. É que, com a chegada do meu tempo findo, a gente se apega, mais do que deveria, às lembranças pretéritas e ao retrovisor do tempo e acaba achando “que, no passado, era feliz e não sabia”.
Era porra nenhuma! As quartas-feiras santas de meu passado nem internet, whatsapp, facebook e instagram tinha, e eu era um jovem liso, desempregado, liberdade vigiada, obedecendo às ordens de papai de não ficar além das 9 da noite na rua, e, ademais, as moças desejadas não eram como as de hoje, temiam as nossas mãos mais atrevidas em suas belezas, o beijo, o cheiro no cangote e, se ficasse um dia de sem-vergonhice com elas, teria de ser namoro sério! Hoje, há evolução da espécie feminina.
As moças de meu tempo iam, às quartas-feiras santas, confessar os seus pecados, destituídas da moda das minissaias, do batom vermelho nos lábios e das camisetas regatas! As blusas usadas pelas moças de meu tempo tinham que cobrir os braços, e as saias, os joelhos, nas confissões comunitárias, no sagrado templo de Raimundo! Não tenho porque ter saudade desse tempo! E nós, rapazes de bigodes ralos, tínhamos, também, que obedecer aos dogmas canônicos católicos.
Menos mal que aquela modalidade de confissão não exigia o ajoelhar-se e o cochichar os pecados no ouvido do pároco. Os nossos pensamentos libidinosos, as punhetas batidas sem a aquiescência divina ou a carne vermelha do cordeirinho proibido abatida na Semana Santa, os socos e pontapés dados e levados, o “vai tomar no cu”, o “fie de rapariga” pronunciados no campo de futebol, o peido negado na sala de aula, a meiota de caranguejo tomada no Bar do Baixinho sem o conhecimento dos pais estariam protegidos, só a gente sabia, e Deus, segundo o Mons. Raimundo, que não tinha que passar por tão grande constrangimento!
Então, era cômodo pra nós, rapazes e moças, essa confissão comunitária! Era só fechar os olhos, nos concentrar no perdão divino e dizer os pecados, pensando nas delícias de sua essência. E era difícil essa concentração, tendo os rapazes que se sentar no banco de trás das garotas, algumas de belas pernas, outras de covinha sacana no engaste sensual de seu sorriso maroto e todos e todas discretamente captando a testosterona, o estrogênio e a progesterona abundantes naquele espaço sagrado! O perdão pelos “crimes” cometidos tinha que ser de Deus, que entende tudo e ama a todos!
E terminada a lavagem da alma, saíamos da igreja purificados e duros! Olhar pro colega ao lado, nem pensar! Zero palavrões! Transitar, até domingo, dia da ressurreição de Jesus, por lugares “impuros”, como o cabaré de Maria Gorda, ou tentar descobrir a razão por que o beco do cu tinha essa denominação?! Pecado mortal! Mijar no beco do mijo, aquele perpendicular ao beco das almas, ou na árvore centenária ao lado do muro do cemitério central, na Semana Santa não podia!
Por que eu teria saudade desse tempo? O que ando sentindo é nostalgia mesmo, talvez porque meu espelho de hoje não reflita, e não reflete, a imagem jovem da beleza de meu sorriso e a riqueza de minha vida! Eu já deveria saber, também, que o tempo é todo feito de Schadenfreude, e que ele, o tempo, desenha o mapa de nossas vidas nos cinco dedos de nossas mãos, com tamanhos profanos e importâncias sagradas, tudo às claras, sem pecados e confissões comunitárias às quartas-feiras santas!
É dito em alemão: "Die Schadenfreude ist die schönste Freude". Isto prova que pimenta nos olhos dos outros é refresco. Nota dez, Nailson. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirObg, meu ilustre e poeta Gil! Vc é o cara! (Nailson Costa)
ResponderExcluir"Típico retrato do interior do Nordeste, provavelmente de outras regiões do Brasil. Lembra passagens do Livro “Meninos do engenho” do José Lins do Rego que mostra a desigualdade da sociedade, a precoce iniciação sexual, o forte patriarcalismo, pedaços de um Brasil atrasado. Na crônica o autor me fez lembrar as bronhas ( punhetas), bem batidas, em homenagem as inalcançáveis e proibidas “Rainhas do milho” das festas de São João. Memórias de um passado que ainda perdura."
ResponderExcluirO cara escreve bem, tem ótimo tato e trato com as palavras, memória incrível e uma clareza textual de poucos. Parabéns, professor Nailson Costa. Você é como vinho!!
ResponderExcluir(João Maria de Medeiros Dantas)
Caro amigo Nailson: longe dos olhos, mas sempre perto do meu coração. O escritor, por poesia, prosa ou crônicas fala sobre os nossos sentimentos. A sensibilidade, o medo ou coragem que muitas vezes não sabemos como expressar. Considero-o um cronista de mão cheia . Viajo no tempo, consigo me sentir dando boas gargalhadas ao imergir em suas histórias. Sua escrita ferina, bem elaborada, reflete um pouco da sua fala. Porém, esconde o tamanho do seu coração e ser humano dedicado às boas causas que é. Sua crônica parece ser escárnio ao "dia de hoje". No entanto, o macho man quem não se vê nos seus escritos ou era santo, leso ou não tem a tinta do escritor. Já sentindo o cheiro da sua obra: " A velhice é uma merda". Grande abraço!
ResponderExcluirHumm com esses comentários já me sinto
ResponderExcluirrumo à ABL! Hoje eu não durmo! Obg, meus amigos! (Nailson Costa)
Ao ler, lembrei um pouco como era aminha semana santa. Ressalte-se, antigamente, no Colégio Cearense de Fortaleza era uma semana sem aula. Agora, a medida que o tempo avança, nossa memória afetiva fica cada vez mais presente.
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