quarta-feira, 21 de agosto de 2024

AFINAÇÃO DE CONSCIÊNCIAS

 


AFINAÇÃO DE CONSCIÊNCIAS


Dalvanira. Encontrei-a em pleno pelo em uma praia de nudismo. A mesma com a qual, na adolescência, namorei. Será que poderíamos nos encontrar hoje à noite? “Si, si”, respondeu, dizendo que havia aprendido vários idiomas na sua trajetória pelo mundo.

À noite, fui ao hotel e a levei para a cabana. Tocamos violão e fizemos muitas coisas. Lá fora, estavam os outros dois por ela colecionados, esperando sua vez. Voltei para o fogo aceso na areia enquanto Dalvanira divertia-se. Ela sempre adorou compartilhar seus atrativos naturais, e naquela noite não seria diferente.

Logo cedo, partimos para as profundezas da mina de carvão, onde ela queria produzir, em si mesma, uma sensação claustrofóbica, seguindo a vontade de se sentir pesquisada. Desde muito cedo, ela defende que é impossível se conhecer totalmente, mas vale a pena continuar tentando. “Como vou saber como agirei sendo devorada por um tubarão se eu nunca me vi naquela situação?”, perguntava-se, imaginando aprimorar sua habilidade em se manter serena diante desses imprevistos.

Para muitos, o proceder dela tinha muito a ver com um ser desgarrado da própria vida, por que não dizer, uma suicida em potencial. Seu padrão comportamental estava em treinamento para nunca se aborrecer, ou pelo menos suportar as agruras da vida com serenidade.

Depois de esperar por um desmoronamento frustrado causado pelo terremoto previsto, saímos para navegar. Ela queria se ver soterrada, esperando ser salva com fome e machucada, mas nada disso aconteceu. Já em alto-mar, a bússola foi jogada fora para que o vento atuasse como senhor do seu destino, e de quebra, do meu também.

Estávamos a sós. Ela manejava as velas apenas para mantê-las intactas. Uma gaivota assustada pousou no convés. O barco balançava, juntamente com minhas dúvidas sobre como é possível caber tanta diversidade naquela cabeça aparentemente normal. Ficamos deitados vendo o filme do céu passar com suas nuvens no protagonismo. Tudo azul e branco, quebrado pelo preto da gaivota que teimava em pegar carona.

Do outro lado do oceano, muitos acontecimentos latentes estavam para acontecer, dizia ela, refletindo em voz alta sem me fitar. “Basta estarmos perto para sermos atraídos por eles.” Falava como se estivesse em transe, e eu apenas bebia na fonte daquela inteligência acima da média.

Quando demos por nós, batemos na areia de uma ilha longe das outras, parecendo que havíamos traspassado para outro planeta. Silêncio total, água parada, sem vento nos galhos despidos de folhas. Olhei ao redor, tentando acordar, mas já estava acordado. Era um realismo pouco convincente, parecendo uma tela pintada. Surgiu uma mulher negra, cabelos brancos, com ossos humanos amarrados na cintura, vindo em nossa direção. Desviei-me do primeiro golpe com o qual ela me atacou, porém do segundo, não. Caí, nem me lembro mais. Acordei perto do fogo, um caldeirão de barro fervendo e a mulher sendo cozinhada. Dalvanira cortava alguns temperos e jogava dentro do caldeirão. Comemos a velha, duas horas depois. “Eu precisava experimentar como é ser canibal”, disse ela ao se levantar para o barco, e eu fui atrás. Na ilha não ficou mais ninguém, pelo menos é o que aparentava.

Subimos a bordo. As velas haviam sido arrancadas a dentadas. Transitamos no porão sem muito o que fazer e, consequentemente, fizemos muito além da minha capacidade física. Acordamos com solavancos no barco. Corri escada acima, e estávamos sendo levados por baleias-azuis em direção ao desconhecido. Senti como se estivesse sendo os ponteiros das horas vivas do destino apressado, e se aquilo iria me levar à morte, já não importava. Perto dela, percebi que era o único lugar onde eu quisera estar toda minha vida. As baleias eram apenas detalhes que me fizeram ver quão vazia era minha existência longe de Dalvanira. Seus olhos apertados, como se estivessem com vergonha de olhar, fitavam-me, vez por vez, na alma, e isso me acalmava. Mesmo com o barco aos solavancos, era como se estivéssemos flutuando. Dessa vez, passamos por dentro de um vulcão em erupção, em pleno redemoinho marítimo. Água e fogo formavam um anel ao redor do nosso barco, espantando as baleias, e esse círculo na horizontal foi subindo até nos envolver, transformando-se em uma bola vermelha e azul, sem cair uma única gota d’água onde estávamos.

Percebi que o círculo era a Terra vista do seu núcleo. Paramos para um café. Uma senhora com duas xícaras e um bule disse: “Aqui sempre passam viajantes iguais a vocês, e minha tarefa é estar sempre pronta para servi-los.” Repousou as xícaras na mesa e nos fez sentar. Conversou sobre a origem da morte como se houvesse decorado o texto. Eu quis perguntar sobre o futuro, mas uma força estrangulava minha garganta. Ela explicou que essa sensação de estrangulamento acontece toda vez que o pensado não pode ser dito.

Ela continuava lendo meus pensamentos: “Tenha calma que daqui a pouco passa o velho recolhendo-os.” Dalvanira nada dizia, apenas sorria ou aparentava sorrir. Minha cabeça a mil por hora e o corpo a zero. Não tinha saída. O tilintar da colher de açúcar se fez ouvir na borda da xícara. Alguém se aproximou. “Quem é?”, perguntei-lhe. “É o velho que vai levá-los para a saída.” Ele tirou do bolso umas pedras e nos obrigou a correr de volta para a estrada. “Cadê o barco?” “Passaram-se milhões de anos”, respondeu Dalvanira. “O barco foi comido pelos cupins, a água transformou-se em areia e aqui estamos de volta para a praia de nudismo.”

Depois, ela me explicou que jamais pode compartilhar pensamentos transformados em realidade sem que o outro sobrevivesse. Foi a partir desse reencontro que passamos a morar juntos e, ultimamente, estamos viciados em gastar nosso tempo em viagens translógicas.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 21.08.2024 - 10h44min.

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