HISTÓRIA DE CAROCHINHA PARA EXORCISTAS

 HISTÓRIA DE CAROCHINHA PARA EXORCISTAS

A velha sempre assistia aos programas da tarde mantendo o mesmo costume de quando o marido era vivo. A criada já havia passado toda a rotina e a planta do prédio para o seu namorado que, naquele momento, já se encontrava dentro de casa com o intuito de matar a dona da fortuna e levar as joias, segundo soube, avaliada em milhões. Para garantir, trouxera uma pistola caso precisasse silenciar mais algum vizinho curioso. 

Chegou por trás, retirou a corda de nylon do bolso, sabedor que a idosa pouco ouvia, percebeu ainda que naquele momento ela cochilava em frente à tela. Pronto para estrangulá-la, sentiu uma alegria por estar fazendo um serviço fácil em troca de algo valiosíssimo. A namorada disse-lhe que a riqueza estava num baú que se encontrava embaixo da cama. Bastava eliminá-la e dividir por dois.

Olhou para baixo, mirou o pescoço e passou a cordinha. Puxou com toda a força que seus músculos estavam acostumados. De repente, um tiro na cabeça. Os miolos do ladrão espalharam-se sujando o vidro da televisão enquanto Tom continuava perseguindo Jerry no desenho televisionado. 

A boneca na cadeira, imitando a velha, nem se mexeu. O som do disparo tinha sido abafado por travesseiros colocados ao redor da arma. A criada adiantou-se para averiguar se nos bolsos do ex-namorado havia dinheiro, e ao encontrar, embolsou conforme o combinado.

A velha recolheu a pistola a qual passou a fazer parte do arsenal da casa. Olhou as roupas, sapatos bons para serem trocados por um quilo de carne. Colocou o defunto mais perto dos seus tigres de estimação para que pudessem se manter calmos por mais uma semana. 

A aliança de noivado fora retirada da mão do seu ex. O relógio também ficou junto no mesmo saco plástico com o celular. Valeu a pena?, perguntou a velha. Sim, respondeu a criada. Ainda hoje você vai para a praça ver se consegue convencer outro rapaz a vir aqui me matar, disse a velha ordenando-a que fosse buscar água e sabão para limpar a sujeira. Não esqueça o desinfetante, desligando a televisão. 

No quarto havia sido feito um isolamento acústico, porém o barulho do disparo ainda pode ser ouvido por perto. Precisamos manter esse bom negócio em total sigilo, disse a velha apontando para a grade que dava acesso ao recinto. Bastava acoplar a outra parte da jaula em cima do morto para que os tigres arrastassem a vítima para dentro do túnel.  

Já tinha sido o vigésimo namorado que a criada atraíra para a cilada nos últimos três meses, sem contar os pedreiros, encanadores e eletricistas seduzidos por promessa de serviços bem-pagos. As duas consolidaram a parceria desde que o seu marido morreu. Ele quem fazia os disparos, agora a velha teve que arranjar uma boneca de silicone para substituí-la e assumiu o peso do coice da arma calibre doze que manuseava com maestria.

Alguém bateu à porta. Quem é? Seu vizinho! Escutei um tiro e vim saber se a senhora está bem. Estou, entre! Foi o botijão de gás que explodiu. Aceita um ponche com limão? Pode ser. Bebeu e caiu espumando pelo veneno fatal que a criada havia posto na limonada. Mais um para os meus tigres. Tiraram os pertences do vizinho procedendo da mesma forma quanto à jaula. 

Chegou encomenda que a senhora pediu. Pode entrar, disse a velha ao entregador. Coloque sua motocicleta aqui dentro e venha degustar uma sobremesa de alto padrão. Quando o entregador se sentou para o lanche de cortesia, a cadeira, junto com ele, foram engolidos pelo alçapão do fosso onde o dragão de komodo encontrava-se prisioneiro. Uma motocicleta acabara de ser incorporada ao patrimônio das duas, além de todo o material armazenado no baú.

Elas sempre faziam compras de forma que objetos pequenos fossem entregues num intervalo curto. Semana passada, contrataram uma professora de línguas para ensinar à criada que fingia ser filha única. Após uma conversa extrovertida, tiveram oportunidade para colocar sonífero no café servido em xícaras luxuosas, para logo em seguida os tigres serem alimentados. Elas sentiam compulsão para matar, e não se contentavam em só assassinar de forma comum. Inventavam tramas diferenciadas para se sentirem motivadas a fazer o serviço. 

Marcaram horário com o dentista. Depois de consolidarem amizade com o doutor, convidaram-no para um almoço em família. Leve a filha e a esposa. Todos os três tiveram o mesmo destino. Nunca ninguém desconfiou de algo a mais naquelas duas que permaneciam distante da vida social do bairro. 

Com o tempo, a rotina tornou-se enfadonha e fizeram um acordo para saberem como era a vida do outro lado. Apertaram os gatinhos de forma sincronizada indo cair diretamente na boca do dragão. 

Tudo ficou calmo naquele prédio misterioso durante o tempo necessário para que os animais morressem por inanição e um pé de goiaba crescesse no quintal, tornando-se objeto de cobiça dos meninos furtadores de frutas. Pularam o muro, porém não obtiveram sucesso porque uma boneca, com uma corda de nylon no pescoço, correu atrás deles com uma faca de doze polegadas “afiada dos dois lados.”

A lenda se perpetuou na vizinhança. Eu não acredito, dizia os mais afoitos, mas não tinham coragem de passar nem na calçada. Numa noite de tempestade, um raio pôs fim ao casarão. Os bombeiros foram chamados. Adentraram a casa, entretanto nenhum deles saiu vivo. Ficou somente o terreno e o portão enferrujado delimitando o espaço intocável. Gerações foram consumidas pelo tempo, os fatos esquecidos, até que um dia um “grileiro” tomou posse do terreno, construiu uma mansão, contratou uma criada e uma governanta idosa, e tudo voltou a ser como antes.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 1º de maio de 2023 – 13h43min.