TENDÊNCIA NATURAL
Poderia ir novamente para temas aterrorizantes que gosto muito, mas já chega de matar personagens. Quero um assunto sobre as flores, a água, algo que não mexa com o medo nem com a ansiedade.
Uns peixinhos nadando num aquário seria uma boa ideia, só que alguém poderia colocar uns filhotes de tubarões e é muito triste ficar vendo as vítimas nadando sem um pedaço do corpo. É melhor deixar o aquário de lado e ir para as plantas sensíveis. Elas ficam registrando a passagem do vento, inocentemente, com suas folhas movendo-se na maior paz do mundo, mas de repente a lagoa seca, o fogo chega...
Ninguém deve sentir medo de flores. Um apaixonado, aproximando-se a data do casamento, leva um ramalhete para sua amada. É uma cena linda, singela e agradável, até que uma abelha sai de uma das rosas e o belo rosto da pretendida incha e tudo termina com um simples beijo do inseto provocador do choque anafilático. Que tal falar de bananas? Com as bananas não tem como prever algo desagradável, só que existem as cascas e se pisar em falso numa delas... Pelo que estou "vendo," não tem jeito!
Essa tendência dramática deve ser produto de um texto que li uma centena de vezes e até sonhei com os personagens. É incrível como eles têm influência na vida real. Alfred Hitchcock tinha pavor aos filmes em que atuava como diretor, é tanto que nem os assistia depois da estreia. Para ele, tudo aquilo era muito tenebroso confirmando que a mente produz e ela mesma se surpreende com o que cria.
Muita “gente boa,” depois que publica, não lê o que escreveu. Tem medo de perceber alguma semelhança com seu “eu obscuro” sendo exposto para um público censurador que, na maioria das vezes, não consegue separar o criador da criatura.
Estou procurando embaixo da cama, nas gavetas cheias de baratas, um assunto ameno para colocar aqui por também ter receio de ser julgado esquizofrênico. O tema se escondeu de um jeito que nem com “reza” ele volta. De repente, apareceu um na mesma linha da "psicopatia virtual" e, para não desperdiçar, aceito de bom grado.
É a história de uma mulher procurando a bolsa antes de sair de casa. Onde a coloquei?, pergunta aflita com medo de chegar atrasada. Você está com ela na mão. Ah, sim!
Saíram apressados sem precisar registrar a arenga costumeira com o marido acusado de não prestar atenção nela. Ao descer, ele permaneceu abraçando-a no elevador até a rotina ser normalizada no térreo.
Chegaram ao casamento do sobrinho dela preocupados com o incidente no elevador. O largo portão da igreja os recebeu de “lados abertos” separando o mundo real daquela fantasia de ver as pessoas "gritando" que queriam ser vistas no último adeus de solteiros.
Não houve estranhamento quando perceberam que todos estavam sorrindo. Sentaram-se na fileira apontada pelo mestre de cerimônia. E os noivos? Devem estar chegando. Deu-se início ao ritual, e no meio da cerimônia descobriram que os dois eram o próprio noivo. Olharam ao redor. As pessoas continuavam rindo como se os sorrisos houvessem sido plastificados. Mas como? Não se lembravam de terem combinado se casar novamente, só que o casal fora transformado em um só ser que, naquele momento, virou-se para contemplar a noiva se aproximando.
Que se levante o noivo, disse o sacerdote com uma voz de criança já os apontando como uma única alma regida pela promessa do matrimônio, realizado há dois meses. Levantaram-se e olharam para a noiva com um vestido preto. Ela, no altar, executou o tradicional gesto da foice decepando o cordão umbilical da vida, enquanto a imagem do elevador, despencando do trigésimo andar, permeava a memória dos dois.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 03.05.2023 - 13h50min.
Fiquei curioso por saber que texto foi esse: lido, relido e sonhado. Quero ter a oportunidade de lê-lo ao menos uma vez.
ResponderExcluirPara matar a curiosidade dos leitores, apresento-lhes o texto (dividido em partes porque num só comentário não coube) contido no livro:
ResponderExcluir“Adentre-me: o almanaque do suspense. / Vários autores ; organizado por
Érica de Oliveira e João Paulo Hergesel. – Alumínio, SP : Jogo de Palavras,
2019, pag. 73” Indicado por Gilberto Cardoso dos Santos:
Hora marcada Cris Dakinis
Eugênio apressava Luísa, que contrariada com a impaciência do marido,
desistiu de trocar de bolsa novamente. Eles chegaram cedo ao consultório e
subiram uma comprida escada até alcançarem uma larga porta de grades
que separava os degraus da sala de espera. Podia-se divisar através das
grades a porta do consultório fechada. Eugênio estranhou.
Confundira a
data ou hora da consulta? Ele consultou o bloco de notas: dados corretos.
Precisavam aguardar... Cansados, sentaram-se na escada mesmo. Como não
havia mais ninguém, puderam esticar as pernas ao longo dos degraus e
relaxar. Foi então que Eugênio decidiu recostar-se à porta gradeada e ela se
abriu.
– Ora, estava somente encostada! E nós aqui, feito dois bobos sentados
do lado de fora.
Entraram. À recepção também não havia ninguém para lhes atender e
a porta interna do consultório estava fechada. No entanto, ambos ouviram
uma voz lá dentro, e parecia ser a do médico conversando com algum
paciente. Ficaram aliviados... O doutor Rômulo já havia chegado então.
Sentaram-se, e dessa vez, nas poltronas. Aguardaram. Luísa mostrava-se
mal impressionada com a poeira acumulada:
Nenhuma faxineira? Então o
doutor cobrava caro a consulta para aquele desleixo? Eugênio ouvia as
reclamações e cismava...
Não havia outros pacientes? Sentiram um forte
cheiro de remédio, desses usados para tratamento dentário, e decidiram
continuar a aguardar... A espera era longa e monótona, até porque a
ausência de sinal de internet não lhes permitia sequer uma distração com
as notícias frescas pelo
smartphone. Luísa precisou utilizar o lavabo, e
Eugênio a acompanhou ao longo do corredor. Ficaram surpresos com o que
viram ao abrirem a porta. Estava tudo imundo e abandonado. Olharam,
quase ao mesmo tempo, para um filtro d’água feito de barro sobre um
suporte a um canto. Eugênio destampou o recipiente. A água lodosa. Foi o
suficiente para que decidissem, sem trocarem palavra, deixar o consultório o
mais breve. Atravessaram a porta de grade e avistaram uma moça no alto
do prédio ao lado, acenando-lhes vigorosamente para que se fossem. Deram
asas aos passos e desceram os degraus com o vigor de um casal de
adolescentes. Do lado de fora do sobrado, acharam certa graça do medo que
sentiram e da aventura inusitada de correrem escada abaixo.
– Eu não volto mais lá! - Argumentou Luísa, decidida.
ResponderExcluirEugênio recordou o barulho dentro do consultório, o cheiro de remédio, a
voz lá dentro... Luísa avistou uma banca adiante com caquis, distraindo-se
do incidente. O fruteiro era simpático e falante, por isso Eugênio resolveu
perguntar se ele já ouvira falar no doutor Rômulo.
– Claro!
– Conhece-o, então? Rapaz, nós estivemos no consultório dele, mas o
doutor não apareceu.
– O senhor esteve lá, hoje?
– Sim. Hoje não é dia? Marquei a consulta pelo telefone.
– Olha, se estamos falando da mesma pessoa, e acho que estamos, ele
não poderia mesmo estar lá, não. O doutor morreu há mais ou menos um
ano. O consultório ficou fechado desde então. Quando foi que o senhor
marcou esta consulta?
– Rapaz, eu falei com ele semana passada pelo telefone. Ele mesmo
atendeu ao chamado e marcou o horário comigo. - Insistiu Eugênio.
– Ah! Na certa, o senhor ligou para o número errado ou levou uma
volta de algum gozador! Não há ninguém trabalhando no sobrado.
– Amigo, falei com ele. Reconheci sua voz. E tem mais: ouvimos pessoas
falando dentro da sala dele hoje, e estavam usando os medicamentos de lá...,
sentimos o cheiro!
O vendedor ria a valer, mas reparando os rostos sombrios do casal, fez
cara séria e entregou-lhes logo o pacote com as frutas, encerrando a
conversa.
Após pagar o estacionamento, Eugênio decidiu, para contrariedade de
Luísa, perguntar ao vigilante do pátio se ele conhecia o dentista.
– Sim, conheci. Faleceu há um ano. O senhor veio procurar por ele? Tem
outro dentista também muito bom aqui pertinho. Nem precisa ir de carro
até lá.
O casal preferiu seguir para casa. Enquanto abriam a porta da
residência, o telefone fixo tocava direto.
– Que cara é essa? Quem era ao telefone? Alguém morreu? - Indagou
Luísa.
– Pelo contrário. Era o doutor Rômulo para remarcar a consulta...