FAMÍLIA ESTRANHA
Pisou num olho ao adentrar o casarão abandonado. Era azul puxado para verde. Lindo olho solto no chão que se tornara apenas uma gosma depois do incidente. Subiu os degraus evitando mãos, intestinos e outros pedaços humanos espalhados pela escada. Alguns em fase de putrefação, outros pingando sangue. Tapou o nariz com um lenço dando a impressão que enquanto subia ouvia gritos das vítimas ressoando por todo o quarteirão.
Chegaram ao andar de cima encontrando tudo limpo num contraste disparado em relação à poeira, fezes e urina de ratos no andar de baixo. Um piano estava sendo tocado por um homem pálido, vestido de preto e com olheiras. Uma taça de vinho tinto...?, em cima de uma mesinha de mármore branco. Polícia!, o chefe da equipe gritou em alto e bom som. Os outros policiais se posicionaram de arma em punho. O homem de preto continuava tocando Bach indiferente aos quatro homens e aquela policial que havia pisado no olho.
Eu sei coisas sobre você, disse o homem parando o movimento das mãos sobre o teclado. O “sobre você” bateu diretamente no cérebro da policial. Ele estava em transe e ela sentiu como se sua mente estivesse aprisionada. O vento quente do bafo dele foi sentido por ela a dois metros de distância. O zumbido monótono de um solfejo permanecia como se a música continuasse a ser tocada na imaginação daquele ser pálido e triste que ora estava sendo apontado como responsável pelo desaparecimento de pessoas nos últimos meses.
Os dedos dos policiais ficaram como petrificados. O homem grisalho levantou-se, aproximou-se da taça bebendo seu conteúdo de uma só vez. Dirigiu-se aos policiais e recolheu as armas como se fossem bonecos de cera.
O que querem aqui? O chefe quis falar sobre o mandado de prisão expedido contra aquele, porém só a mulher conseguiu se expressar. Você sabe que não há como ser aceito por aqui, não sabe? O piano começou a tocar uma canção suave sem que ninguém estivesse dedilhando-o. Como não? Sou dono da Terra, portanto tudo me pertence, inclusive o gado humano que deixo se reproduzir para meu consumo. É melhor voltar para lá e ficar mais mil anos em estágio letárgico, sugeriu a moça que tinha uma cicatriz no pescoço.
Diga-me o que sabe sobre mim, disse ele virando-se para sentar-se ao piano. Ela atirou na sua nuca, com a arma que estava na bota. A bala de prata atravessou a garganta, mais uma e outra espatifaram a cabeça sendo, rapidamente, decepada por um golpe certeiro da espada dos antepassados samurais que ela carregava nas costas.
Os policiais voltaram a si e, a mando dela, separaram os membros e depois tocaram fogo ali mesmo. Ela juntou as cinzas, misturou com urina de cavalo capado e enterrou nas valas cavadas em forma da estrela de Davi. Ao saírem, incendiaram o casarão enquanto canções variadas foram sendo executadas como se o instrumento tivesse criado vida. Depois da meia-noite até o primeiro cantar do galo, ventos esverdeados varreram os destroços em busca de algo que permanecia enterrado.
Após esse dia, as pessoas deixaram de sumir e a cidade voltou a sua pacata rotina. A moça continuou tentando adaptar-se a tomar sangue apenas de animais aproveitando a carne para negociar no açougue da sua irmã, agora também órfã de pai.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 23.05.2023 – 08h11min.
Um bom conto, arrepiante e perturbador, repleto de elementos macabros e sobrenaturais. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirVem mais por aí.
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