APARENTANDO SER
Naquele dia, depois do almoço, uma aflição tomou conta da mulher. O marido não estava em casa e um homem jovem descabelado chegou dando ordens. Prepare o meu jantar que mais tarde vou dormir aí dentro. Colocou a trouxa dum lado, armou uma rede no alpendre e deitou-se.
É melhor o senhor ir embora porque meu marido não está e ele não vai achar nada bom encontrá-lo aqui. O mendigo nem deu para conferir permanecendo de olhos fechados e com um sorriso irônico fingindo estar dormindo.
A mulher fechou a porta da frente e me mandou sair pela de trás. Vá à casa do compadre, conte a história e diga que venha expulsar esse mau sujeito. Fui, no entanto o compadre encontrava-se no barreiro. Parti e o encontrei vindo com uma carga d’água. Vou descarregar os barris para poder ir.
Parecia que o compadre estava com medo do homem. Nunca vi uma carga demorar tanto para ser descarregada. Vamos? Deixe só eu amarrar o jumento, disse ele caminhando lentamente em direção ao tronco de amarrar jumentos. Vou à moita. Deu frouxidão no compadre e impaciência em esperá-lo sair do mato.
Entrou em casa para pegar terço e crucifixo. Esse povinho, disse ele, sai com reza. Ele é magro ou gordo? Um tipão de homem sujo que só vendo. Depois de caminhar um pouco, voltou para pegar a espingarda de soca. Parou para tirar raspa de pau para fazer bucha e comentou: homem grande precisa de muito chumbo para botar abaixo. Percebendo o assobio, quatro cães nos acompanharam.
No caminho, passamos na casa da viúva e ela me deu um litro de querosene. Se ele estiver dormindo, jogue e toque fogo nos cabelos que é melhor canto. Eu só não vou porque estou com uma panela no fogo, mas qualquer coisa grite que levo a turma daqui para ajudá-lo. A senhora não vai escutar por mais que eu grite. Não está vendo que além de ser longe é contra o vento!?, ainda quis convencê-la, porém ela embirrou, e para que eu não saísse falando mal do seu gesto de lavar as mãos, foi buscar uma garrucha que o seu falecido esposo usava na proteção do galinheiro. Leve, só tem duas balas, mas resolve, é só não errar.
Saímos. Coloquei na cintura e logo a arma foi descendo pela virilha. Caso houvesse um disparo acidental, nem é bom imaginar. Arrumei um barbante e amarrei a bicha no cós da calça. Fui caminhando atrás do compadre imaginando o que iríamos fazer. A minha sandália quebrou o pitoco que segurava a correia no solado. Peguei um espinho de xique-xique e atravessei na ponta já pensando onde arranjaria um prego para substituí-lo. Um dos cães acoou um tejuaçu e os outros saíram em dispara fazer a festa.
O compadre não perdeu tempo: Ave Maria, cheia de graças... Eu pensava que ele fosse corajoso. Chegamos e entramos pela cozinha encontrando a patroa com uma mão de pilão numa das mãos e na outra uma vasilha vazia de alumínio amassada. Ele está roncando, foi logo dizendo. Joguei água, mas nem se mexeu.
O compadre pediu café. É melhor a gente matar logo o homem, depois eu faço o café, o que acha? Não comadre!, vou ficar rezando pela brecha da porta e você vai preparando. Só gosto de matar cabra ruim depois que tomo café com pão. Não tem pão, só broa. Ave Maria, cheia de graça... misericórdia!
Nessa hora, chega a filha da viúva. O compadre continuou a reza e a moça, aproveitando o escurinho da tragédia, agarrou-me puxando para o quarto. Minha patroa nem sonha o que aconteceu por lá. Eu até achei bom aquele homem ter aparecido para que tudo tivesse acontecido do jeito que aconteceu.
Quando saí do quarto, encontrei a patroa empurrando o compadre para ir enfrentar o forasteiro. Não teve jeito. O covarde se apegava ao terço que só vendo. Era tanta reza que minha cabeça ficou zonza uns dois dias depois da ladainha. Ele começou baixinho, e percebendo que o cidadão não arredava o pé passou a gritar aleluia, vá embora satanás, etc. Misturava candomblé, louvor e gritos de torcida de futebol com suor descendo.
Os cães entenderam que era para dormir também. Ficaram lá na maior paz e a patroa permaneceu aperreada em ter que dar explicação para o marido sobre aquele estranho dormindo folgado na ausência do dono da casa. Vá lá e dane bala nesse desgraçado, ordenou-me ainda com a porta fechada. Comadre!, gritou o compadre fazendo-a voltar do corredor. Traga logo esse pretinho e não se esqueça das broas. Acabou-se, só batata, serve? A preta seria bem melhor porque dá coragem. Enquanto a discussão sobre broa preta e batata se processava, escutei um estrondo do lado de fora e um mau cheiro entrando pelas frestas. Parecia que o sujismundo havia comido carniça.
A patroa se avexou para olhar pela brecha da porta e avistou seu esposo se aproximando com os trabalhadores. Criou coragem, deu de garra de uma foice, e abrindo a porta cortou os punhos da rede. Eu saltei atirando e os cães... ô carreira grande. Gastei as duas balas que nem perto passaram. O homem, ao sentir estar sendo molhado com querosene, gritou: mãe, sou eu, seu filho pródigo.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 25.05.2023 – 10h48min.
Trata-se de uma narrativa envolvente, repleta de elementos que cativam o leitor e com final surpreendente. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirVamos ver o que consigo para apresentar amanhã.
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