sexta-feira, 26 de maio de 2023

NÃO EXISTE DESVIO

 


NÃO EXISTE DESVIO


Chegou em casa atordoada pelos primeiros acontecimentos da manhã. Vinha do plantão. Sentou-se na cama, sorriu e deitou-se. Era muita felicidade para início de um dia de folga. Meu Deus! Vai dar certo! Levantou-se e foi ao banheiro. Começou a escovar os dentes sentada na privada imaginando o quanto tinha lutado para que tudo isso viesse a acontecer. Cheirou a toalha como de costume. Tirou uma seca e jogou a que estava molhada na máquina. Odiava toalha com cheiro de mofo e aquela havia passado a noite sem tempo para enxugar e não tinha como ser diferente.

Olhou para a calcinha e nela nada apareceu que a fizesse desistir da ideia que estava grávida. Seus dias de solidão iriam acabar. Tinha contratado um homem para fazer sexo com ela, pois precisava ter um bebê, mas a convivência com um ser que a chamasse de namorada estava fora de cogitação. Odiava os homens pelos seus maus hábitos de se coçarem em público, dar gargalhadas acima dos decibéis permitidos e urinarem na tampa do sanitário, porém precisava deles para gerar filhos. Claro que já havia conversado tudo isso com as colegas, entretanto nenhuma delas concordava em ficar dormindo sem um ronco com cheiro de cachaça ao lado. Que nojeira, dizia ela enquanto ouvia que muitos soltavam gases durante o sono. 

Ela queria um príncipe encantado que saísse de cena toda vez que ela quisesse ficar sozinha. Já havia tentado com muitos rapazes, porém já havia acontecido de ser abandonada em pleno jantar pela sua mania de controle exacerbado. Tratava-os como deficientes quando estava numa convivência parecida com namoro.  

Durante o banho, já planejara tudo como ia ser. Enxugou os pés com uma toalha pequena. Outra coisa que odiava era frieira, e sabia que se não passasse um pano entre os dedos criaria chulé, inadmissível para seu padrão perfeccionista. Para ela, esses ensinamentos eram a salvação da humanidade. Odiava piadas. Na verdade ela odiava quase tudo, e ficou pensando que a dor do parto iria fazê-la sorrir. 

Foi dormir depois do café. Fechou as cortinas, ligou o ar e tentou fechar os olhos. Revirou-se com uma coceira no couro cabeludo. Depois a coceira foi passando para o corpo ao ponto de tirar-lhe o sono. Ligou a TV e parecia que todos os que lá contracenavam também estavam se coçando. Ela percebeu que as pessoas caminhavam unicamente com o intuído de coçar o solado dos pés. Esses pensamentos ela escondia das outras pessoas para não pensarem que era maluca. Quando começava a perceber um som ou ação, tudo soava com muita intensidade. Parecia que a mente projetava o que ela queria ver e ouvir e assim acontecia. 

Após tomar o antialérgico, acertou o alarme para dali a seis horas de sono. O sol já estava a pino quando acordou no mesmo instante que o telefone tocava. Quem será que em pleno século vinte e um ainda faz ligação telefônica?

Ele morreu! Quem morreu? Seu filho. Não tenho filhos. Estamos adiantados vinte anos, e ele acaba de ser assassinado. Quer dizer que vou ter um filho? Sim, e ele será assassinado depois de lhe dar muito prazer e você quase perder o juízo tentando enquadrá-lo no seu querer. E você também não suportará a perda e se suicidará. Então é melhor abortar. Sim, se não quiser passar por tudo isso. 

Ela levantou-se, foi à caixa de remédios e tomou um abortivo. Já havia feito isso muitas vezes por suas dúvidas não permitirem se arriscar. Dê um tempo e tente fazer sexo com outro, talvez o destino dele seja melhor. Não tem como saber antes de engravidar? Não, só depois de gerado é que se pode dar uma alma e fazer o escaneamento sobre sua vida.   

Morto antes de nascer, essa era a sua sina. Sempre estava a adivinhar o futuro, e por isso amealhava mais e mais experiências dramáticas antes de vivenciá-las. Sua angústia consistia em ter vários projetos com o final sendo dela quase totalmente conhecido. Como foi a morte dele? Ninguém pode informar-lhe. O jeito é pegar um novo ser em seu útero e tentar amenizar essa sua capacidade de interferir no futuro. 

Já era tarde da noite. Perdera o sono e um pouco da esperança em se transformar em uma pessoa normal. Tomou o aparelho nas mãos e telefonou de volta para o plantão do futuro. Aqui não se dá treinamento como chegar aqui são e salvo. Você precisa ir tentando, e com o tempo o destino vai sendo construído pela sua mente. Largou o telefone e saiu procurando espermatozóides pela noite afora. Conseguiu mais um, e logo o descartou.

No dia seguinte, adentrou à sala e encontrou vários caixões perfilados onde exercia a profissão de bioquímica. Ao abrir o primeiro, lá estava ela própria com uma fita marcando a data de amanhã, e foi aí que percebeu que de tanto encurtar o ciclo de outras vidas, a própria, correndo na mesma esteira do tempo, também havia sido encurtada. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.05.2023 – 17h25min.




2 comentários:

  1. Um conto que provoca reflexões sobre escolhas e destino. Somos levados a repensar nossas próprias perspectivas sobre a vida e a valorizar as incertezas e surpresas que ela nos reserva. Boa temática, devidamente desenvolvida. - Gilberto Cardoso

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  2. Parabéns, Gilberto, pela perfeita interpretação. Muitas vezes fico a imaginar se eu tivesse agido diferente em determinado momento da minha vida, como e onde eu estaria neste momento. Parece que cada momento da nossa vida há inúmeras ramificações para que se possa escolher e que terá influência no conforto ou desconforto pelo qual passamos. Nossa vida hoje é reflexo dessas escolhas, inclusive de quem leu até nossos comentários.

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