sábado, 27 de maio de 2023

ATMOSFERA CEREBRAL

 


ATMOSFERA CEREBRAL


Olhando para a escuridão da madrugada, esperava o sol nascer sentado na cadeira de balanço do alpendre. Naquele instante, quem o visse diria que ele estava representando a mais autêntica solidão. O véu negro transformava as árvores em sombras e ele também era sombra, pensava procurando seu ponto de referência para formar uma opinião sobre o mundo. 

O jantar comemorativo do qual havia participado, ainda permanecia influenciando seus pensamentos. Naquela época, houve um deslocamento do curso normal do cotidiano quando um estrondo igual trovão trouxe a notícia da barragem sendo destruída. Os convidados só foram poupados porque correram para o andar de cima e se juntaram aos empregados de risos abafados por estarem no mesmo nível social de vítimas. 

Voltou para o presente e detectou um astronauta olhando para a mesma escuridão em que se encontrava. Tinham em comum o fato de permanecerem vagando no imaginário. Havia o propósito de ficar sozinho, sem necessariamente estar na solidão, pois permanecia no mesmo espaço residencial junto com as mulheres que vieram depois que as águas baixaram.  

Estava consciente da escolha em conectar-se a um ser pensado e interligado numa só sensibilidade. Isso era ele com os pés na terra e o psíquico no vazio infinito. Percebeu que a grande distância entre os dois era apenas um simples detalhe, e que não precisava desprender esforços para visitar a realidade de cada um deles.

Sua vida cada vez mais se complicava por ter atraído as damas da noite para a mansão. Com a intimidade sendo enlarguecida, elas começaram a exigir do bom e do melhor, e a informação de quando voltariam para suas casas estava sendo negada pelas ladras que contribuíam para sua falência.  

Como é bom ser sombra, pensava ele impulsionado pela situação dramática em que se encontrava imaginando permanecer mais tempo longe da dor angustiante das incertezas. Era sombra, e isso já o completava mesmo sabendo que não iria ficar imune ao processo do desgaste mortal do tempo. Passou a fumar um cigarro atrás do outro, mas isso não lhe satisfez e nem resolveu suas travas mentais. 

Ninguém ataca uma sombra, pensou consigo mesmo refletindo também que ninguém paga ingresso para ver a cara comum dos artistas antes de entrarem em cena. Quanto mais teimava em ser um desmiolado, mais imagens saltavam à sua frente. Era como se o sol desmanchasse o esquecimento trazendo uma enxurrada de lembranças que o fazia permanecer sentado para não tontear.

Uma outra sombra, lá longe, emitiu um som de corça esforçando-se para parir. As lamúrias atraíram um leão que a fez se calar para sempre. As sombras estavam criando vida carregadas de morte. Ele já podia ver seus pés, mãos... o mundo da luz vinha chegando trazendo preocupações e fatalidades. 

Levantou-se para admirar as cores e formas definidas que estava a se formar lentamente. É como se o sol fosse parindo um novo mundo que, ao mesmo tempo, expulsava os borrões noturnos e suas divagações. Agora só restava vivenciar a realidade que não deixava de ser também um personagem criado pelo mundo das sombras.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 27.05.2023 – 06h42min.



2 comentários:

  1. A forma como você mesclou eventos passados e presentes na narrativa foi habilidosa, dando ao leitor uma visão mais ampla da história e dos pensamentos do protagonista. Al metáfora das sombras foi adequadamente explorada ao longo do texto, criando uma atmosfera poética e misteriosa. Parabéns! - Gilberto Cardoso

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  2. Obrigado, Gilberto, pelo "Parabéns!" Às vezes fico pensando se não consegui transmitir bem essas fugas, mas você vem e diz que sim, que o texto está claro. Obrigado mais uma vez pelos seus comentários na medida certa.

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