quarta-feira, 24 de maio de 2023

O OUTRO LIXO

 



O OUTRO LIXO

(MACIEL SOUZA)

 

O quintal aqui de casa é maior do que o necessário, nele tenho até pista de caminhada e dele acumulo alguns relatos. Outro dia recebi a visita do rapaz da Vivo, sondando o local para instalar uma antena. Foi do quintal que surgiu a crônica Frutos Adocicados, em homenagem a meu vizinho, seu Arlindo, e é de lá que colho pinha, laranja, acerola e flores. Ali nosso cachorro foi sepultado e é onde hoje vive a nossa gata.

O ruim é que ele fica numa esquina, limita-se com um beco. Daqueles que pegam o beco, aparecem latinhas jogadas por cima do muro, garrafas pet e, do nada, insistiram em jogar sacos de lixo. Mesmo assim, prefiro esta certa desordem à organização imposta dos condomínios, onde até espirros precisam ser educados. Mas tudo tem limites, depósito de lixo não dá. Investiguei o lixo e, a exemplo do lixo de Luís Fernando Veríssimo, o conteúdo e as pistas apontaram ao funcionário do seu dono. Chamei o proprietário para uma conversa, ele reconheceu seu lixo com mil pedidos de desculpas, fez a limpeza do local e tudo ficou resolvido.

Outro dia jogaram um gato recém-nascido num dia chuvoso, tomei-o nos braços, envolvi-o com uma toalha, coloquei-o em lugar seguro e fiz um rápido diagnóstico conclusivo de que setenta por cento de seus órgãos estavam paralisados. Ao meio-dia, entendi que esse comprometimento chegara a noventa e cinco por cento e o vi agonizando. À tarde, encontrei-o se arrastando e consegui com que bebesse leite através de uma seringa. A partir daí a recuperação foi instantânea: passeou, brincou dentro de casa e começou a reagir às investidas de ciúmes por parte do meu cachorro. Passamos então a chamá-lo de Vitório porque ressurgiu do nada. Minha esposa ficou surpresa e expliquei-lhe que gatos possuem sete vidas.  Depois foi adotado por uma família e ficamos sabendo que era uma fêmea.

Do quintal para frente da minha casa, vivia sendo importunado com um menino que passava e tocava a campainha: Um dia eu pego! Flagrei! Pra ele estava tão comum que simplesmente cruzou o beco, enquanto o segui até a lotérica. Pedi para que não mais se repetisse, do contrário iria conversar com seus pais. A façanha voltou a se repetir e desta vez era a mãe do menino, neutralizando meu poder de argumentar e até de dizer alguns palavrões.

Mas foi hoje à tarde que palmas infantis na minha porta me motivaram a escrever esta crônica, com o título o Outro Lixo, para não confundir com O Lixo de Veríssimo. Eram quatro crianças:

— O senhor é o dono da casa?

 Sim, sou eu!

— Dá pra o senhor devolver nossas bolas?  São duas que caíram no seu quintal.

— Tá certo, vou procurar e jogo de volta!

 

No momento pensei: Por onde andam os pais destas crianças tão educadas e me imaginei bem velhinho rodeado por elas adultas, lembrando do ocorrido. Depois, passou em minha mente minha própria imagem riscando a calçada de seu Zé Lopes com uma patinete, e de repente ele em pé com um bodoque numa das mãos e quatro bolas de barro cozido na outra. Pra nunca mais! E no dito beco sem muro, eu adentrava a área particular do quintal de seu Hermes Nascimento e colhia limões sem que ele ou meus pais nem sonhassem.

Um comentário:

  1. Caro diploMaciel: seu exercício de empatia aplicado aos contratempos aleatórios do dia a dia rendeu-lhe mais uma boa crônica. - Gilberto Cardoso

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