sexta-feira, 2 de setembro de 2022

INCONSCIENTE MACHUCADO - Heraldo Lins



 INCONSCIENTE MACHUCADO 


Cinco horas da manhã e até agora não consegui pescar nenhum pensamento que valesse a pena torná-lo público. Acredito que foi porque a atenção foi direcionada para os dois aborrecimentos de ontem à noite. 

O primeiro, foi me deparar com uma pedinte sentada ao lado da entrada do estabelecimento comercial onde fui fazer compras. Ela tentou, com um "discurso vitimado", atingir meus frágeis sentimentos para conseguir ajuda. Senti-me desconfortável diante daquela situação, e o pior é que não encontro solução para esse desconforto. 

Há muito tempo, no início da minha carreira de aborrecido, cheguei a fazer doações, depois veio o “perdoe-me,” mais à frente passei a utilizar o clássico "não" que evoluiu para a total indiferença.

O silêncio, que utilizei ontem como resposta, estava carregado de xingamentos. Claro que não expus meu plano interno ao passar por ela, mas foi desagradável o que senti naquele momento. 

Quanta maldade habita em um ser reprimido pelo Estado, pensei sobre o meu próprio estágio evolutivo. Ali desfilava o verdadeiro eu, aparentemente, educado, cordial e sorridente, porém indiferente à aflição alheia. 

Tive vontade de trocar de lugar para sentir a sensação de ser ignorado, desprezado e até de ter a sandália atropelada pela rodinha do carrinho que fiz questão de jogar por cima, disfarçadamente, claro! Naquela ação, utilizei os mesmos cuidados de um médico-cirurgião, aprumando, meticulosamente, o bisturi da separação social para não perder a patente de cliente importunado, rebaixado a um sádico egoísta. Olhando para o chão, para as rodinhas e para o objeto a ser atropelado, percebi, junto às sandálias, uns pés sujos naquele disfarce de desvalida, mas isso não me sensibilizou, pelo contrário, deu-me mais raiva ainda!

O quanto sou mau, pensei ao abrir o porta-malas e guardar o sonho de consumo daquela pedinte. Liguei o veículo e saí para esnobar, ainda mais, minha condição de classe média frustrada. 

Parei no restaurante e fui continuar me vingando do ser que existe dentro de mim; o ser que também pediu esmola; que também foi desprezado e que agora, por mais que tenha saído da situação de mendicância, continua a enxergar seu reflexo em quem ainda permanece naquela situação. 

Ao adentrar ao estabelecimento, dei de cara com uma pobre atendente distribuindo pequenas placas de madeira com numeração. Peguei a minha senha e dirigi-me ao buffet.

Escolhi camarão, pescada-amarela... O preço da sobremesa é o mesmo, disse-me a mulher do caixa, o que me fez colocar tudo no mesmo prato. Definir o local para sentar-me seria logo solucionado por uma mesa há pouco esvaziada. 

Saboreando aquele jantar típico de cidadão da zona sul, fui despertado do transe por uma "bem feita" perguntando-me o que eu queria para beber. Apesar de já conhecer a beleza daquele traseiro empinado, aborreci-me por achar que ela jamais iria querer um namoro aleatório comigo, e sim, apenas vender suco de uva ao leite. 

A ocupante da cadeira à minha frente tomou a iniciativa e nem precisei gastar meu cansado "não." Fiquei a pensar o que fazer com essas garçonetes insistentes que ganham comissão pelos líquidos vendidos em cada mesa, e logo me veio a ideia de fazer uns pequenos cartões com os dizeres: não perturbe; ou então: se precisar, eu chamo.

De volta ao lar, mesmo com a barriga e a geladeira abastecidas, veio-me a lembrança da pedinte. O mal-estar permaneceu sem eu poder me ver livre dele. Minha vingança, contra aquela que não pensa em trabalhar, deve ser maior, tinia no meu cérebro a ideologia planificada. 

Para tentar acabar com possíveis desalentos futuros, resolvi escrever para a ouvidoria do supermercado: 

"passei na sua loja e lá me deparei com uma mendiga sentada na entrada. Quando vejo aquilo, desconfio que a empresa está patrocinando as pedintes com o intuito de vender mais... Espero que seja resolvido esse incômodo o mais rápido possível."

A ouvidoria respondeu em seguida: "boa noite, Sr. Heraldo! Estarei repassando sua reclamação para nossa gerência. Obrigada! Agora sim, estou aliviado para pensar em justiça social.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02.09.2023 — 10:34






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