sábado, 3 de setembro de 2022

É MAIS FÁCIL SER DE DIREITA QUE DE ESQUERDA - Aécio Cândido

 


É mais fácil ser de direita que de esquerda


                                 Aécio Cândido


          É mais fácil ser de direita que de esquerda. As ideias de direita são mais naturais, intuitivas, parece que elas ocupam a mente humana bem antes do sujeito nascer. Quem, de modo indireto, entendeu isso muito bem foi Machado de Assis, no conto A Igreja do Diabo. 


           Antes de prosseguir, relembro aqui a observação arguta de Chagas Silva, colega professor da UERN: “Eu acho que quem tem poder mesmo é o Diabo: não tem nenhum padre a serviço dele, nenhum pastor, e veja a desgraça que corre no mundo. Deus tem todos a seu serviço e as conquistas são muito poucas”.  Acho difícil Malafaia e outros tantos pastores neopentecostais não estarem a serviço do Diabo, mas passo ao largo: eles dizem que servem a Deus e seus fiéis acreditam. 


          Vamos ao conto. Sua abertura é magistral: em apenas três frases a história é montada e o essencial do enredo é exposto. É suficiente para fisgar o leitor e deixá-lo se contorcendo de ansiedade, querendo saber o que vai acontecer. Curiosidade é a mola do mundo, é o que faz as coisas progredirem. Pode ser a ruína do homem, mas como exceção; como regra, é a mãe do avanço. 


          “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos”.


          O Diabo beneficiava-se do culto a Deus; levava o seu, porque Deus não conseguia se fazer absoluto: sobrava, no que se oferecia a Ele, sempre algo que convinha ao Diabo – o fiel mais puro e comprometido sempre cometia alguma açãozinha inconveniente, mais pra lá do que pra cá. Eram esses os lucros do Diabo. Mas, insatisfeito, ele queria tudo: o culto inteiro.  


          Na conversa com Deus, o Diabo pondera: “Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto”. De fato, o preço para chegar ao Céu é alto, demanda esforço; já o do Inferno é barato, não se sua nada para chegar lá. A entrada no Céu depende de uma luta feroz do homem contra si mesmo, uma luta contra sua natureza dúbia, animal. Via o Diabo que a igreja de Deus tinha defeitos, e disso queria tirar proveito.


          A criança, em geral, é truculenta: contrariada em seus desejos, ela reage com as armas de que dispõe – dentes e unhas. A truculência não precisa ser ensinada; precisa ser “desensinada”. Sem dúvida, o mal é mais humano do que o bem. O ciúme, a inveja, a preguiça são muito mais naturais do que a generosidade e a disposição para o trabalho. O perdão, a compaixão e o altruísmo; a mansidão e o respeito é tudo coisa inventada, construída como modelo ideal. O natural do ser humano é o egoísmo, a violência, a desconfiança.

 

   Sim, o contrário desses valores naturais é construído pela educação. A educação e a cultura fazem o homem. Tiremos do homem o fino verniz da educação e ele volta a ser bicho; destrua-se na cultura as ideias humanistas de igualdade, de dignidade humana, de justiça e de direitos e o resultado é a luta de todos contra todos, aquilo que há quase 400 anos Hobbes detectou, identificando o homem, nesse cenário, como o lobo do homem.  


          A religião, embora se apresente como uma parede de contenção contra a barbárie humana, sua história no Ocidente não deixa isso evidente. Deus, nos inícios primitivos, mais que um inspirador de comportamentos, é um protetor mágico, com quem se troca proteção. Ele deve interferir de imediato para curar, para livrar do perigo, para fechar o corpo. A relação com esse deus-magia centra-se no culto, mediada pela oferenda (o holocausto de ovelhas e pombas entre os judeus, o sacrifício humano entre os incas e de galinha e outros bichos no candomblé).  


          As pulsões do mal (vingança, crueldade, violência, ódio) estão presentes nas origens religiosas do Ocidente. Os judeus do Antigo Testamento não conheciam a ideia de amor universal, de direitos universais. Embora “Não Matar” apareça entre os 10 Mandamentos, ainda que em 5º lugar e só depois dos que se referem ao próprio Deus, a interdição dizia respeito apenas aos judeus. Não era afronta a Deus matar cananeus, samaritanos, egípcios e o mais que fosse. Ainda assim, quando Moisés desce do monte Sinai com as Tábuas da Lei e vendo que o povo, cansado da espera, fizera um bezerro de ouro, o que fez Moisés, tomado de raiva? Quebra as Tábuas e manda matar todos aqueles que se envolveram na festa: foram mortos 3 mil homens, passados a fio de espada por ordem de Moisés (Êxodo, 32, 28).


             Nenhuma religião, em seus primórdios, condenou a escravidão. 


        A religião leva muitos séculos para conceber uma teologia ética, com implicações sobre o comportamento. Esta é uma novidade do cristianismo. Qual é o maior mandamento para Jesus? Amai-vos uns aos outros. Não é fácil, é preciso esforço. Já não basta amar e louvar a Deus, é preciso amar o outro, sem fronteiras geográficas e sociais.


          O que é central no ideário de direita? A liberdade individual, ditada pelas razões do indivíduo, o que deriva na liberdade do mais forte restringir a liberdade do mais fraco. Também é central o egoísmo, derivando dele a dinâmica do mercado, paradoxalmente capaz de promover justiça. O egoísmo e o narcisismo são mais instintivos que seus contrários.


          As ideias de esquerda são construídas, são frutos da razão, contra a natureza humana. Em vez do egoísmo natural, o altruísmo (a medida do agir é o outro); em vez de privilégios para um grupo, a ideia de direitos universais (homens, mulheres, brancos, pretos, orientais, ocidentais, velhos, jovens todos têm direitos inalienáveis); em vez de o mercado como fonte de justiça, o Estado, para corrigir as distorções do mercado. A ideia de direitos humanos não é natural, ela levou milênios para ser construída. O direito à vida e o direito a um julgamento justo são construções intelectuais relativamente recentes. Elas não brotam naturalmente na alma de todos.


          Uma das lições que se pode tirar do conto de Machado é a seguinte: nas profundezas da alma humana há uma mistura de sentimentos, díspares, às vezes, que geram ações divergentes. Em outros termos, o homem tem dentro de si Deus e o Diabo, mais o Diabo do que Deus. Ainda que o indivíduo se disponha a seguir as regras, que são comuns, um pouco do comportamento individual, que se contrapõe a elas, fica fora. São as franjas, na linguagem do autor. 


       Interessa a alguém saber se Machado de Assis era de direita ou de esquerda? 


                Aécio Cândido (Poeta, Prosador e Educador), autor dos livros Poemas Hemorrágicos e de Conhecimento, Conhecimentos - como sabemos o que sabemos 










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