domingo, 4 de setembro de 2022

DECISÃO A CONTRAGOSTO - Heraldo Lins

 


DECISÃO A CONTRAGOSTO 


Acordou logo cedo, entretanto ficou na cama admirando o telhado. Ainda estava amanhecendo e a única coisa que o prendia ao leito era ficar olhando a claridade chegando entre as brechas das telhas. Naquela manhã, demorou-se fazendo os raios de luz encolher conforme fechava ou abria os olhos, vagarosamente. 

Em seguida, levantou-se sentindo o aperto fisiológico e, no banheiro, ficou perplexo ao notar um camaleão perto do ralo. Fechou o box deixando-o trancado para depois resolver o que faria com aquele réptil olhando para a janela aberta. Veio-lhe à mente o discurso de uma candidata dizendo que se votarem nela o congresso deixará de ser uma bagunça. Como pode alguém imaginar que uma só pessoa dá conta de uma tarefa tão complicada como aquela?

Durante a toalete, imaginava seu estágio de solitário naquele casarão. A filha da cozinheira, doadora de beleza, não havia chegado. A decisão em ficar com ela pesava-lhe bastante. O cargo de Juiz exigia algo mais do que a emoção libidinosa, e o corregedor-geral jamais o perdoaria se deixasse sua filha por aquela guria sapeca, mas não podia negar que seu sangue fervia ao vê-la ajudando na cozinha. 

Era uma das cenas que mais gostava de assistir, e ela, fingindo não o ver, demonstrava total naturalidade ao estalar a roupa íntima por baixo da saia justa. Será que a mãe a trazia para seduzi-lo? Se for isso mesmo, está conseguindo. 

Durante as audiências aquela beldade não saía da sua cabeça. Perguntou-lhe se teria condições de secretariá-lo no fórum. Preferia ficar por ali sendo desejada, pensou ele enquanto tomava café diante da resposta sorridente e negativa dela. 

Hoje chegara com um short jeans. A parte de cima expunha a curva entre o tórax e o quadril. O umbigo de fora era coberto quando ele o mirava. Tinha que evitar um olhar direto, porém, aqui e acolá, ela facilitava olhando de lado e dando-lhe tempo para que ele viajasse em seus devaneios. 

E se não desse certo? Perderia sua reputação correndo o risco de ter o casamento já marcado desfeito.  

Sentiu inveja do jovem pároco que havia deixado a batina para casar com outra princesinha da cidade. Ali tem coragem, mas ele... hum! Sempre foi indeciso em assuntos afetivos.  

Não sabia o que fazer, sabia apenas que tinha que fazer, e rápido. Seu coração andava muito acelerado pensando nas duas.

Imaginava o quanto tinha estudado para vir trabalhar naquelas quatro horas distante da civilização. Sua decisão teria que ser exata na hora certa entre meia dúzia de mulheres que o cobiçavam na vizinhança. Jovem num posto tão promissor, era necessário tomar uma decisão.  

Os dedos corriam durante o dia assinando despachos, sentenças, servindo para se distrair daquela tentação vinda entre uma assinatura e outra. Tinha receio de cair no marasmo de quem está sempre a ser testado. Ele concordava que a fecundação dos espíritos se dá através da energia existente nas tentativas e erros, pensamento logo quebrado pela voz da mãe ordenando que a filha levasse a crepioca para a mesa.   

Ao ter o braço roçado, sua pressão subiu. Isso tem que acabar, disse para si e, ao mesmo tempo, queria mais. Ela exalava o cheiro de menina, aquele que a fêmea larga pelo caminho atraindo os pretendentes. Sentiu vergonha da alteração manifestada e, para disfarçar, ordenou às duas que espantassem o camaleão do seu banheiro e saiu para o trabalho apressadamente.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.09.2022 — 18:38



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