SOFRE E NÃO ESCAPA
Um caderno no chão com histórias recentes e um capacete em cima. Esses objetos estão ao lado de um sofá que serviria para quem ficasse depois dos tiros. Época péssima para os frágeis inimigos infantis. Tiros, fome e sede, além do desespero causado pelo vírus sem vacina, sem máscara, sem saída, o da ganância.
Em outras cenas, perto do asfalto, duas garrafas vazias de vinho da safra passada, muito passada. Na esquina interna da parede uma bola branca com manchas avermelhadas. Um lençol cor da tragédia cobre o sofá, com várias almofadas cor da bola. Mais à frente, uma mesa de vidro clareada pela luz da manhã seguinte. Ainda, na varanda, um bistrô que servia para degustar lagosta e, às vezes, caviar. Bons tempos que não voltam mais.
O casal alegre conversando sobre o futuro dos filhos é coisa do passado. Estão todos inertes na calçada. Gente, objetos, permanecem esperando por quem não vem, se é que “gente objeto” sabe contar o tempo de espera. Estão acompanhados sem se dar conta, e a filha chorando pela morte da mãe, bem longe, ou mal longe, ou longe do mal, não se sabe.
São tempos de se falar em quem acordou no meio do seu próprio funeral. Falam também dos milionários morrendo misteriosamente, o mesmo acontecendo com crianças pobres, contudo, ninguém noticia.
O odor é de cigarro queimado na vizinhança. Ninguém tem o que fazer, a não ser tragar sua própria fumaça. Aliás, fumaça é o que não falta. Parece até que a transformação precisa da fumaça para que ocorra.
Lá embaixo, tanques apressados queimando, desajustado, óleo diesel. Onde se quer chegar...? o próprio sol já não nasce para todos, mas, mesmo assim, nasce sem piedade.
É mais um dia de tormentos embaralhando o raciocínio que quem ainda possui. Fatos é o que não falta em uma sociedade com o padrão armamentista. Esse é o mundo indo embora em forma de cinzas. As lembranças permanecem sendo substituídas pelo medo da chuva ácida e do fogo, que entra em cena para que o medo sinta medo.
A estrada continua a crescer o dobro do que é caminhado. O céu olha para cima e tem inveja do infinito que o espera. Vamos caminhando com os pés no pensamento, e o pensamento sem os pés. É assim mesmo, fala o desesperado. Só resta a lembrança da esperança que morreu, há pouco.
Desliga o celular dando início ao seu suicídio virtual. Sempre foi um avatar cumprindo a programação dos bons-dias e dos emojis. Agora a dor é real, principalmente a dor das incertezas. Assiste notícias sobre falta de água e não se conforma com pessoas fabricando outras que serão jogadas à escassez.
Olha e se vê sentado observando por onde desfila o pensamento. O som da violência está ligado à rapidez. Como é difícil manter-se vivo em uma sociedade apressada em consumir, consumir, consumir, consumir... É o progresso sendo destruído para depois se reerguer e, mais adiante, ser destruído novamente. Muitos choram em ver suas criações aos destroços. Orgulhos da família agora viraram pó. Outros, sentirão orgulho em serem bons no que fazem. Por outro lado, haverá outros se autointitulando bons em destruir os bons.
Neste caso, o diálogo manso e a linguagem sem explosões perdem a utilidade.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 17.05.2022 - 20:27
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”