CICLO DAS RESPONSABILIDADES
Completamente bêbado e de estatura reduzida, Assis distribuía dinheiro na fila das comadres. Se não me falha a memória, sua mãe também já era falecida quando ele começou a fazer isso. As comadres, no restante do mês, ofereciam-lhe um almoço grátis, e, depois do expediente, uma alcova.
Nunca se defendia da esposa, apenas um riso desviado do olhar acusatório. Continuava fazendo seu trabalho, inclusive nela, quando precisava de uma cirurgia de embelezamento. Achava até bom operá-la. Eram dias de sossego do pós-operatório.
Em vez de confrontá-la, apelava para sua autoridade de cirurgião plástico apontando onde precisava de um retoque viciante no ajuste corporal. Era uma forma de deixá-la com a voz mansa e um carinho potencializado para com ele. Ao ouvir isso, ela se transformava. Ficava a noite toda olhando onde havia sido apontado a imperfeição do passar dos anos, e no dia seguinte tomava a frente nos agendamentos para se sentir bela, mais ainda.
Antes de cada cirurgia, afastava-se dos companheiros que o convidavam para a vida mundana. Nos momentos de necessária concentração, vinha-lhe à memória as palavras do seu pai ecoando como o sino de Belém: “primeiro a obrigação, depois a diversão”. Era como se houvesse um ser organizando dois homens em um só corpo, um pervertido e outro compromissado e estudioso.
Sou teu irmão, a voz interior dizia junto ao seu entendimento. Muitas vezes, no corredor daquela casa de saúde, via imagens o acompanhando. Quando jovem estremecia, agora já havia se acostumado. Nem as mulheres, que tanto amava, o fazia desviar-se. Era certo que havia momentos que o outro Assis empurrava-o para o mundo lá de fora, porém, ultimamente, quase não acontecia mais.
Sua pesquisa sobre transplante de cabeça estava indo de vento em popa. Alguns ajustes na célula que daria origem a um novo cérebro, e estaria tudo resolvido. Achava bom ter desafios sobre doenças não registradas na literatura. Perdia o sono se colocando no lugar das bactérias e vírus, pois algo lhe dizia que todo ser vivo pensa, inclusive, os vegetais.
Na verdade, conseguia viajar pelas soluções dos antigos egípcios. Isso ele fazia com facilidade, eis o motivo maior de não se preocupar em ter uma biblioteca. Os livros, segundo ele, mostravam apenas o que a indústria farmacêutica queria que fosse mostrado. Sabia, mas não divulgava, que muito conhecimento acumulado fora apagado de propósito, substituído por conceitos que gerassem renda para outros cientistas. Por isso que se dizia que uma doença, por mais antiga que fosse, precisava de novas drogas com o único objetivo de alavancar a indústria das novas necessidades.
Vez por outra, como inicialmente registrado, vinha-lhe uma vontade quase indomável de escapulir para um mundo só dele, e fazia isso através do álcool. A verdade da alma, presente no mundo multiversal, essa valia mais que muitos congressos médicos.
Sua linha de pensamento incluía ficar entediado quanto mais trabalhava. A maior luta era para ficar com o “pensamento boiando”, como gostava de chamar, sentindo os que vinham por conta própria.
Assis ficou sem jeito quando a filha disse que se casaria na manhã seguinte. No momento da comunicação, o cirurgião estava lutando contra a vontade de ir encontrar os amigos. Não queria ficar bêbado, mas desta vez precisava pelo menos descomplicar o que ouvira há pouco. Já ia saindo de fininho quando o menor o segurou pedindo-lhe para ajudá-lo com o dever de casa.
O costureiro, que estava retocando o vestido da filha, olhou para a insígnia na parede. Esse é a medalha do Nobel que seu pai ganhou? Sim. Parecia não ser o momento para se perguntar aquilo, mas em meio ao clima de festa, a pergunta foi digerida, naturalmente.
Casamento e farra aconteceram simultaneamente, mas a fila das comadres, não. Agora teria que obedecer a outra fila que o empurrava para uma nova direção. Assim é o ciclo da vida, pensou, e viajou junto com as imagens que o acompanhavam na casa de saúde.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 15.05.2022 – 11:15
Muito boa, Heraldo. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirObrigado, Gilberto...
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