domingo, 15 de maio de 2022

DESTINO DESCARRILADO - Heraldo Lins

 


DESTINO DESCARRILADO


 Naquela manhã de janeiro, um simples operário limpava a rua quando encontrou... O narrador ficou em dúvida o que colocaria em seguida para dar continuidade à narrativa. A dúvida consistia em optar se o operário havia encontrado uma pedra preciosa, um bilhete premiado ou um amigo. O autor queria tirá-lo daquela situação de pobreza. Tinha total liberdade em direcionar a ação depois que o personagem encontrou algo, só que a dúvida mexeu e remexeu. As pessoas esperavam, impacientes, que rumo tomaria a história.   

O concurso de repentes históricos estava acontecendo com a mesa julgadora analisando a criatividade. Esse evento acontecia de quatro em quatro anos, reunindo os mais ”escatológicos” competidores. O início da narração havia sido pronunciado pela mesa, e, depois das reticências, cabia ao candidato continuar a falar de acordo com a proposta. 

O narrador decidiu pela primeira opção e continuou: ...o operário encontrou uma  pedra preciosa, e poucos minutos depois, mais uma foi achada. Varrendo mais adiante, tropeçou na ideia do que fazer com as pedras. Uma voz dizia para vendê-las, enquanto a outra voz gritava para que, apesar de ser o que era, pendurá-las no pescoço. Ao voltar para a repartição,  foi promovido com a justificativa de que a empresa estava precisando de alguém com aquele perfil para comandá-la. 

Com escritório na rua da Elite, o gari, todos os dias, ia às audiências para conseguir a licença para usar as pedras. Doze anos se passaram com aquela peleja nos tribunais, a ponto de ter que vender uma delas para exercer seu direito com a restante.   

Acabado o almoço, ele comentou que um anjo o havia dado aquele presente. Dez, vinte, ou mais, conseguiria se assim quisesse, pois seu “amigo da guarda” era generoso. Então não vá perder tempo nos tribunais, disse uma das envolvidas na defesa da peleja. Como assim? Dê uma pedra a quem decide por seus direitos. É feio agir assim. Que tolice! Feio é ficar fora do feixe de luz que ilumina o caminho por onde se passa. 

A maior parte daquelas que sobreviviam à custa da miséria alheia, colocava fogo na fornalha. Vamos dificultar para que isso nunca acabe, diziam batendo palmas. O rico gari não entendia, mas continuava usando seu diferencial entre os demais. Imaginem só um gari ter mais “panca” que um juiz, diziam alguns.

Uma das três turmas do tribunal vivia olhando para a rua em busca da opinião pública. Eram os “Maria-vai-com-as-outras”, que mesmo sem provas, decidiam de acordo com os dados rolados na mesa do cassino. Nem a mulher do gari escapava às exigências dos livros, e até conseguiu ter novos hábitos mentais regulando sua performance. Como explicar o caso das pedras? Esse anjo deveria ter escolhido um outro alguém para o colocar em posição privilegiada, diziam os “midiáticos”. 

À noite, o sortudo foi a um bom e velho restaurante conhecido por “ralado de saudades”. Nesse restaurante acontecia de tudo, até um enterro chegou, pois era parada obrigatória para os que deixavam de viver. Na mesa vizinha, um aniversário de casamento estava acontecendo ao som de “muitas felicidades”. No final do salão, o self-service, cheio de formigas, havia sido pago por ele. Um cálice de vinho, debaixo de um leque florido, distraía-se com aquela situação. Em atenção às qualidades do ambiente, chapéus vistosos de homens públicos, não tão vistosos, descansavam por cima dos ternos amarrotados de trabalho.  

Além da profissão de gari, seu Silva continuava conhecendo as docilidades das mulheres que não resistiam a uma pedra no pescoço. Conteve-se diante da dama de honra do falecido. Quis levantar-se, mas o garçom, por duas vezes, o obrigou a ficar gastando hora. 

Gilmara, sem nada dizer, pegou de uma faca e meteu na carne dura do frango servido. Escutou o anúncio de um novo dia pelo cantar longínquo daquele outro que estava vivo, enquanto recebia carinhos de seu marido. 

A esposa sempre fora determinada, e agora, guiada por um princípio metafísico, desvencilhava-se dos seus medos e ilusões. Ninguém a advertiu que há uma metafísica da ilusão, porém, intuitivamente, ela entendia a relação entre pedra, marido e anjo. Disse que havia sonhado com aquele momento, e por isso estava ali. Gilmara, afinal, deixou a mesa sem dizer que seguia um chamado em busca de um sentido conclusivo dento de si. 

Daí a alguns minutos, seu Silva despediu-se e a acompanhou sem deixar paletós nem chapéus aborrecidos, apenas pensando como seria se houvesse encontrado o bilhete premiado ou um amigo, pois a noite acabara de se acabar, e o tempo do narrador, também.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.05.2022 – 05:00




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