por que não enterramos o cão?
- theo g.
alves
quatorze
foram os anos em que ela esteve em nossa companhia. nos últimos meses, o peso
de seu corpo parecia maior que a disposição de suas patas e deitava-se por
toneladas sob a goiabeira. a coleira e a corrente a limitarem-lhe os movimentos
e o sol a castigá-la sobre o pelo. deixou-se
morrer mais do que morreu. cansou-se e foi parando de funcionar aos poucos,
como um relógio a definhar cada vez mais lentamente às últimas voltas da corda.
não se levantou mais. e só descobrimos sua morte após dois ou três dias, a
julgar pelo cheiro e pelas moscas que se começavam a juntar. quatorze anos
findos sem dignidade. ao menos, arrefecia-me o peso da culpa pensar que os cães
não se importam com dignidade e a vida divide-se em estar vivo ou não. invejo
os cães que vivem sem arrastar o peso do passado e sem antecipar a apneia do
futuro. depois de quatorze anos, o cão estava morto e isso era tudo. o vizinho
encarregou-se de levá-la até a ponte e deve tê-la lançado de cima para o
matagal e a pouca água que por debaixo dela corria. depois de quatorze anos, o
cão estava morto e não lhe demos minimamente um enterro. a coleira continuava
presa ao pé-de-goiaba que já não dava frutos. haveria morrido com o cão? no
entanto, esta não era a pergunta. não é ainda o que me pergunto. mas por que
não enterramos o cão?
por
que não enterramos o cão?
empurro
a ossatura do hipopótamo sonolento sobre a cama até que ele esteja de pé, mesmo
ainda pouco firme e nada consciente. conduzo-o até o chuveiro, mas sua pele
parece impermeável, grossa e bruta como remendos em uma lona de caminhão. os
comprimidos ainda não acordaram o animal, que se veste lenta e pesarosamente
como quem se apronta para o enterro do pai. desce as escadas lentamente, cansado,
sufocado pela tira gasta de sua coleira e o peso das correntes que o atavam ao
pé-de-goiaba, sob o sol escaldante de uma cidade feita só de limites e
memórias, mais pesada e cansada que o hipopótamo atado.
por
que não enterramos o cão?
terá
o lodo corroído seus pelos/plumas? terá o cão se tornado rio, como em joão
cabral? quanto do capim elefante nascido sob a ponte acima de rio nenhum terá
seu húmus? depois que a jogaram de lá, não houve mais cheias e o rio nunca mais
lambeu a sola dos pés da ponte. por que não enterramos o cão? por que a
lançamos sobre a terra e não abaixo dela? por que não alimentamos as raízes de
gerânios e grama com o resto de sua carne, com o cálcio desfeito de seus ossos?
depois de tanto tempo, por que ainda há um cão a enterrar?
por
que não enterramos o cão?
pendurados
às paredes como enforcados em árvores, os relógios estrebucham em
quase-silêncio. a ampulheta inane não compreende mais seu ofício e tudo está
parado. o hipopótamo corpulento enforcado em sua coleira, amarrado à fonte das
goiabas com que minha avó nos alimentava. as vozes soam ao redor do corpo.
todos dizem coisas interessantes e engraçadas, frívolas, porque a vida não
requer mais que isso se inventada publicamente. o relógio continua parado e
ninguém se importa. o hipopótamo cinzento ergue-se e arrasta as correntes
lentamente de volta para casa. guia com dificuldade e suas imensas mãos
anfíbias o carro, como se vestisse uma armadura intransponível feita toda de
ira e vazio. percebe que os relógios voltaram a acelerar o dia. talvez chegue
em casa à hora de retornar. a ampulheta quer retomar o dia perdido e corre.
trespassa as árvores e os cães de rua, que seguem lentos e magros sobre a
terra. não haverá tempo. logo será hora de retornar e as ruas estarão mortas
mais uma vez, como o hipopótamo que se arrasta com a corrente ao pescoço, preso
ao pé-de-goiaba. os cães ainda estarão soltos às ruas? o meu cão não estará,
por certo. imagino agora seus ossos a darem musgo e ramos de capim. queria
dizer que dariam folhas de relva, para achar no abandono a poesia de whitman.
não direi. porque não enterramos o cão. por que não enterramos o cão?
a
alegria de sua companhia e a disposição de sua guarda nos serviu sempre.
repetia a ela as palavras novas que aprendia pelo pequeno mundo que me cercava
e ela abanava a cauda para me saudar numa oferenda táctil à minha pequena e
recém-descoberta solidão. ela deitava-se ao pé de mim e acompanhava as
primeiras leituras em que eu ainda claudicava até os primeiros deslumbramentos
dos livros mais pesados. eu ainda não sabia de mortes, exatamente. no entanto,
eu sabia que deveríamos tê-la enterrado: fiz silêncio, apenas. devo ter ousado
perguntar por que não enterramos o cão, mas aceitei o silêncio das respostas.
assisti quieto e pesaroso às imensas mãos do homem colocar o cão breve no saco
de estopa. pus-me a rezar, porque ainda não sabia que isso valia tão pouco. só
precisávamos ter enterrado o cão. por que não o enterramos.
por
que não enterramos o cão?
os
pássaros alimentam-se do que os parasitas deixaram incrustado ao couro do
bicho. os parasitas roem lentamente o dia e sua imundície. o hipopótamo rumina
o silêncio de seu caos, de sua casa, de seus traçados. a lama em que chafurda
não permite que se mova. não chafurda, afunda-se. sonha com o silêncio das
palavras, deseja que nenhuma voz se ouça enquanto a noite escorre por suas
patas muito pesadas. arqueja, respira pesadamente e sofre. a couraça feita de
aço e musgo é um artifício mentiroso de sua proteção: é frágil como o filhote
de um pássaro, como um boi feito de vidro e dobradiças. cruza a ponte, as mãos
pesadas sobre o volante, e assiste ao homem grande arrastar um saco em que deve
estar o cão quatorze anos atrás. desacelera. passa lentamente pelo coveiro de
outro tempo e não compreende porque não enterramos o cão.
por
que não enterramos o cão?
o
cão está morto outra vez.
o
trinado do despertador violenta o sono malcozido. o hipopótamo imenso põe-se a
arrumar o dia, corre, engole o café magro e asseia-se parcamente, com o relógio
a gritar-lhe pressa. já no carro, o homem de voz bonita anuncia as horas e o
dia pelo rádio. é domingo. é domingo, ele pensa, mas que diferença faz? que
diferença faz, ele repete, e lembra-se do cão, lembra-se que não o enterraram.
muda bruscamente de direção, porque hoje ele botará a ponte abaixo, a qualquer
custo: sob os escombros restarão os dentes e ossos de todos os cães do mundo
que foram deixados ali: suas almas e pelos brotarão finalmente sob o concreto
da ponte, sob a quentura dos anos passados e, ao fim do dia, o cão estará
enterrado. finalmente.
SOBRE O AUTOR
theo g. alves é poeta, contista e fotógrafo. nasceu em dezembro de 1980, em natal – rn, mas é radicado em currais novos, cidade do mesmo estado. publicou os livros artesanais “loa de pedra” (poesia) e “a casa miúda” (contos), além de ter participado das coletâneas “tamborete” (poesia) e “triacanto: trilogia da dor e outras mazelas” (contos). em 2009, lançou o “pequeno manual prático de coisas inúteis” (poesia e contos); em 2015, “a máquina de avessar os dias” (poesia), ambos pela editora flor do sal.
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