Cristiane Maria
Praxedes de Souza Nóbrega (UFRN)
cristianenobrega@bol.com.br
Benedita Vieira
de Andrade (IFPB)
benedita.v@gmail.com
I.
Introdução
Durante mais
de 20 anos, Mário de Andrade e Câmara Cascudo trocaram intensa correspondência
que foi publicada no livro “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas,
1924-1944”. Nessas correspondências, em meio a confidências e assuntos de caráter
pessoal, os dois escritores teciam importantes comentários a respeito da
cultura, da arte e da política brasileira, inclusive das obras que estavam
produzindo.
Tomados pelo
fervor de nacionalidade que pairava durante aquele período da história cultural
brasileira, os escritores se dedicaram a construir – ambos ao seu modo – uma
vasta produção artística que desnudasse os traços caracterizadores da
brasilidade latente no território cultural do Brasil. As cartas trocadas pelos
dois escritores pontuam o modo como percebiam a construção dessa brasilidade.
Do ponto de vista metodológico, serão
analisados trechos de 4 cartas de um conjunto composto de 159 cartas. Como a
construção da representação discursiva de brasilidade se encontra diluída em
diversas cartas desse conjunto, consideramos que não haverá problemas no
recorte aqui proposto, uma vez que “uma dada representação discursiva pode ser
construída em vários pontos do texto, não necessariamente sucessivos” (PASSEGGI
et al, 2010, p. 268). Nesse sentido,
para os objetivos desse estudo, estamos considerando que as 4 cartas analisadas
serão tomadas como um único texto. Também identificaremos as cartas com a mesma
numeração que foi utilizada no livro Câmara
Cascudo e Mário de Andrade: cartas, 1924 – 1944.
A abordagem proposta neste artigo permitirá
aprofundarmos um dos níveis da instância textual ainda pouco explorado em
termos de análises empíricas: o nível semântico, apoiado nas representações
discursivas e em noções que remetem ao conteúdo referencial do texto.
A próxima seção se voltará para uma
apresentação sucinta da Análise Textual dos Discursos (ATD), do modo como ela
vem sendo trabalhada pelos autores anteriormente citados, no contexto da
Linguística de Texto desenvolvida no Brasil e, em seguida, apresentaremos a
caracterização das operações de textualização com as quais trabalharemos neste
artigo e que mapeiam a construção de um discurso de brasilidade.
II.
A dimensão semântica na Análise Textual dos
Discursos
A Análise Textual dos Discursos,
elaborada pelo lingüista francês J.-Michel Adam, é uma abordagem teórica e
metodológica que se insere no campo da Linguística Textual e tem como objetivo
de pensar o texto e o discurso em novas categorias. Dessa forma, “situa
decididamente a linguística textual no quadro mais amplo da análise do
discurso” (ADM, 2008, p.24). A ATD se propõe constituir como alternativa para
atender à demanda por propostas concretas para a análise de textos. Uma teoria
do texto e suas relações com o domínio mais vasto do discurso se oferecem como
um novo quadro e uma indispensável coerência para as diferentes ciências da
linguagem.
Com o objetivo de dar uma resposta a essa
demanda, a ATD se apresenta como uma teoria de conjunto, no contexto mais amplo
da LT, que postula “ao mesmo tempo, uma separação e uma complementaridade das
tarefas e dos objetos da línguística textual e da análise de discurso” (Adam,
2008, p. 43), pois sendo o texto um objeto empírico complexo, cujo conteúdo
semântico pode estabelecer relações com vastos domínios discursivos, sua
descrição e análise prescindem de um quadro teórico mais amplo que, ao mesmo
tempo em que dialoga com diferentes ciências da linguagem pertencentes ao campo
das práticas discursivas, defina que operações de textualização são pertinentes
para promover a materialidade discursiva.
Em síntese, Adam (2008, p. 23) designou
e desenvolveu a ATD como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que
deve fundar-se na análise de textos concretos”. Em linhas gerais, desenvolveu
sua proposta baseada em quatro níveis principais, conforme Rodrigues; Passeggi;
Silva Neto (2010, p. 152)
a)
um
nível sequencial-composicional: em que os enunciados elementares (a
proposição-enunciado ou proposição enunciada) se organizam em períodos para
compor as sequências. Estas, por sua vez, se agrupam conforme um plano de
texto. Esse nível focaliza a estruturação linear do texto, no qual as sequências
desempenham um papel fundamental;
b)
um
nível enunciativo, baseado na noção de responsabilidade enunciativa; que
corresponde às “vozes” do texto, à sua polifonia.
c)
um
nível semântico, apoiado na noção de representação discursiva e em noções
conexas (anáfora, correferências, isotopias, colocações) que remetem ao
conteúdo referencial do texto.
d)
um
nível argumentativo, embasado nos atos do discurso realizados e na sua
contribuição para a orientação argumentativa do texto.
Como o objetivo desta pesquisa se volta
para a dimensão semântica do texto, não abordaremos os outros níveis de análise
propostos pela ATD. Nessa direção, focalizaremos uma das noções mais
importantes trabalhadas pela ATD nesse nível de análise: a noção de
representação discursiva. Essa noção – juntamente com as noções de
correferência, anáfora, isotopia e colocação[1]
– constituirá o conjunto de categorias semânticas da ATD utilizadas na análise
da construção de sentidos em textos concretos. Neste artigo, algumas dessas
categorias serão utilizadas para investigarmos como
o Nordeste é representado discursivamente no corpus em estudo como um espaço constitutivo da brasilidade.
Segundo Rodrigues; Passeggi; Silva Neto
(2010, p. 173) “todo texto constrói, com maior ou menor explicitação, uma representação
discursiva do seu enunciador, do seu ouvinte ou leitor e dos temas ou assuntos
que são tratados”. Essa construção resulta de atividades de referenciação
concretizadas linguisticamente na tessitura de um texto. Isso remete ao entendimento de que a
construção do sentido nasce de um acordo entre os participantes de um discurso
que negociam dentro do seu conjunto de crenças o como pretendem referir-se às
entidades que estão no mundo, assim os objetos aos quais se fazem referência em
um dado discurso não são objetos do mundo real, são entidades oriundas de uma
construção mental, isto é, são objetos-do-discurso. (cf. MARCUSCHI, 2005) Entretanto,
esses objetos são instituídos textualmente numa proposição enunciada, portanto
é nela que se estabelece a representação discursiva, como propõe Adam (2008, p.113-114):
Toda proposição enunciada possui um valor
descritivo. A atividade discursiva de referência constrói, semanticamente, uma
representação, um objeto de discurso comunicável. Esse microuniverso semântico
apresenta-se, minimamente, como um tema ou objeto de discurso posto e o
desenvolvimento de uma predicação a seu respeito. A forma mais simples é a
estrutura que associa um sintagma nominal a um sintagma verbal, mas, de um
ponto de vista semântico, uma proposição pode muito bem se reduzir a um nome e
um adjetivo.
Como podemos observar, a representação
discursiva é construída no e pelo discurso. É o interpretante que constrói a Rd
a partir dos enunciados propostos, em função de suas próprias finalidades e de
suas representações psicossociais da situação, do enunciador e do mundo do
texto. Embora Adam (2008) não apresente de forma explícita quais são as
categorias de análise das representações discursivas, seguiremos a proposta de
Rodrigues; Passegi; Silva Neto (2010, p. 172-184) que propõem, com base nas
operações que a ATD define para o período/sequência descritiva, as seguintes
operações de textualização: tematização,
reinterpretada como um caso específico de referência/ referenciação; aspectualização e relação. Acrescentam-se também os procedimentos de predicação e localização espacial e temporal – com base nas operações
lógico-discursivas de Grize sua noção de esquematização, a qual Adam (2008) se
reporta ao remeter-se a sua obra de 1997, em que trata da representação
discursiva.
Sem se estender muito na conceituação
dessas operações, faremos em seguida uma sucinta caracterização de cada uma
delas, exemplificando-as com trechos pertencentes ao corpus desta pesquisa.
A tematização
se constitui como a principal operação, visto ser um procedimento de designação
(tematização) e redesignação (retematização) dos referentes. Ela é responsável
pela instituição dos objetos-discursivos.
“Tem momentos em que eu tenho
fome, mas positivamente fome física, estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! si eu pudesse nem carecia você me
convidar, já faz muito que tinha ido por essas bandas do norte visitar vocês e
o norte.
Queria ver tudo, coisas e homens
bons e ruins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já
amo. Porém você compreende, Luís, este Brasil
monstruoso, tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer uma língua que
ligue tudo, como é que a gente o pode sentir integrado caracterizado,
realisticamente? Fisicamente? Eu quando me penso brasileiro, e você pode ter
certeza que nunca me penso paulista, graças a Deus tenho bastante largueza
dentro de mim pra toda esta costa e sertão
da gente, quando me penso brasileiro e trabalho e amo que nem brasileiro.” (Carta
7 – MA)
A aspectualização
reporta-se às características ou atributos dos referentes ou das
predicações.
“Tem momentos em que eu tenho
fome, mas positivamente fome física,
estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me
alimento! Ah! si eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz muito que
tinha ido por essas bandas do norte visitar vocês e o norte.
Queria ver tudo, coisas e homens bons e ruins,
excepcionais
e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. Porém você
compreende, Luís, este Brasil monstruoso,
tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer uma língua
que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir integrado caracterizado,
realisticamente? Fisicamente?
Eu quando me penso brasileiro, e
você pode ter certeza que nunca me penso paulista, graças a Deus tenho bastante
largueza dentro de mim pra toda esta costa e sertão da gente, quando me penso brasileiro e trabalho e amo que nem
brasileiro. (Carta 7 – MA)
A relação
se manifesta nos processos de assimilação ou dissimilação analógica,
constituindo-se como base da comparação, da metáfora e de outras figuras de
linguagem. A relação também pode se
estabelecer nas ligações entre enunciados (conexões), ressaltando-se o valor
semântico dessas ligações, e não o estritamente textual.
“Queria ver tudo,
coisas e homens bons e ruins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir,
cheirar. Amar já amo. Porém você compreende, Luís, este Brasil monstruoso, tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer uma língua que ligue tudo, como
é que a gente o pode sentir integrado caracterizado,
realisticamente? Fisicamente? Eu quando me penso brasileiro, e você pode ter
certeza que nunca me penso paulista, graças a Deus tenho bastante largueza
dentro de mim pra toda esta costa e sertão da gente, quando me penso brasileiro
e trabalho e amo que nem brasileiro.”
(Carta 7 MA)
“O sertão está morrendo de
progresso e os termos bons e
saborosos vêm à tona como náufragos
teimosos”. (Carta 33, LCC)
A predicação
remete-se ao procedimento de seleção dos predicados (designação dos
processos: ações, estados, mudança de estado etc.) e ao estabelecimento da
relação predicativa do enunciado.
“Queria ver tudo, coisas e homens bons e
rúins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já
amo. Porém você compreende, Luís,
este Brasil monstruoso, tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem siquer uma
lingua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir integrado caracterizado, realisticamente?
Fisicamente? Eu quando me penso brasileiro, e você pode ter certeza que nunca me
penso paulista, graças a Deus tenho
bastante largueza dentro de mim pra toda esta costa e sertão da gente, quando
me penso brasileiro e trabalho e amo que nem brasileiro.” (Carta 7 MA)
A localização
aponta o espaço e o tempo no qual se desenvolvem os participantes e os
processos.
“Tem
momentos em que
eu tenho fome, mas positivamente fome física, estomacal de Brasil agora. Até que enfim
sinto que é dele que me alimento! Ah! se eu pudesse nem carecia você me
convidar, já faz muito que tinha ido
por essas bandas do norte visitar
vocês e o norte.” (Carta 7 MA)
Na seção seguinte, apresentaremos
as análises de trechos das cartas 07 e 13 de Mário de Andrade e 31 e 33 de Câmara
Cascudo.
III A
representação discursiva: nordeste, espaço de brasilidade
Nesta seção,
propomos a análise da construção de sentidos do discurso de afirmação de uma
nacionalidade, com base numa representação discursiva mais ampla que toma o
Nordeste como o espaço autêntico dessa brasilidade.
Faz-se necessário,
embora não venha a ser o foco desse estudo, dizer que a representação do
Nordeste que se configura nas cartas se constitui e se conecta a outras
representações que aparecem no seu plano textual: a representação do sertão, a
representação de como os missivistas se veem nos seus próprios discursos e no
discurso do outro, por exemplo.
Vejamos então,
como se constrói a representação do Nordeste, espaço de brasilidade.
“Tem momentos em
que eu tenho fome, mas positivamente fome física, estomacal de Brasil
agora. Até que enfim sinto que é dele
que me alimento! Ah! se eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz muito
que tinha ido por essas bandas do norte
visitar vocês e o norte.
Queria ver tudo,
coisas e homens bons e ruins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir,
cheirar. Amar já amo. Porém você compreende, Luís, este Brasil monstruoso, tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem
sequer uma língua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir integrado
caracterizado, realisticamente? Fisicamente? Eu quando me penso brasileiro, e
você pode ter certeza que nunca me penso paulista, graças a Deus tenho bastante
largueza dentro de mim pra toda esta costa e sertão da gente, quando me penso brasileiro e trabalho e amo que
nem brasileiro”. (Carta 7 – MA)
O objeto de discurso “Brasil” é
introduzido através de uma metáfora para designar a ânsia, o desejo de Mário de
Andrade por conhecer o Brasil. É interessante observar que o autor, logo em
seguida à primeira proposição do período, introduz com o conectivo “mas” uma
operação de aspectualização para o referente “fome”: “fome física, estomacal”.Esse
processo marca uma atitude em que se revela a
intenção do locutor de deixar claro para seu alocutário que não se trata de uma
metáfora, de fome como desejo apenas: estava falando de fome no sentido de
necessidade de comer, “fome estomacal”. E essa fome é “fome de Brasil” – como
espaço físico que deve ser degustado, experimentado. Essa intenção é confirmada
em seguida com a proposição: “sinto que é dele que me alimento”. O Brasil
retomado por “dele” é tema da predicação “me alimento”.
Sem desfocalizar o objeto de discurso
“Brasil”, é introduzido o referente “norte”, como uma extensão do espaço
brasileiro. Não se trata de novo referente, mas de uma retematização do
referente introduzido. O norte representa uma extensão significativa do Brasil
que Mário de Andrade tem fome de conhecer, explorar, “devorar”. Esse espaço é
representado discursivamente como uma porção significativa de Brasil, como
parte do território brasileiro, que como tal deve ser valorizado.
Mário de Andrade expressa o desejo de
conhecer as coisas, os homens, as sutilezas, as diferenças do Nordeste
(referido como norte) por meio de uma predicação que explora os sentidos
“queria ver, sentir, cheirar”, revelando desse modo sua ânsia de demonstrar que
compreende o “norte” como espaço brasileiro palpável e real que deve ser
sentido e vivenciado por brasileiros, como ele, que ainda desconhecem essa
porção de Brasil. Nessa ânsia de reconhecimento
de brasilidade, acaba denunciando que o Brasil
“tão esfacelado, tão diferente” (operação de aspectualização) apresenta espaços
alheios, esquecidos, como o é o Nordeste.
Diante disso, é pertinente a passagem em
que Mário de Andrade, ao comentar sobre o Congresso Regionalista[2],
evidencia a importância desse espaço para a questão da brasilidade.
“A primeira de todas as teses devia ser: Contribuição do Nordeste para
a constituição da Brasilidade psicológica,
econômico-social, lingüística e artística.” (Carta 13 MA)
Observa-se
que, na proposição citada acima, mais uma vez a operação de aspectualização (em
destaque) dos referentes e a marcação de uma predicação modalizada pelo verbo “dever”,
com o seu sentido convencional de “obrigatoriedade” estabelecem uma atribuição
prioritária e formalista ao Nordeste para a constituição da brasilidade. Com isso,
percebe-se a intenção de Mário de Andrade de registrar o quanto é necessário e
urgente o reconhecimento do Nordeste como espaço que também integra um Brasil caracterizado
como “monstruoso”, e por isso, “esfacelado” e “diferente”.
E é com a
modalização do “poder”, marcando convencionalmente o sentido de “possibilidade”
que na passagem “como
é que a gente o pode sentir integrado caracterizado, realisticamente?
Fisicamente?” que Mário indagando, responde em seguida
que só se pode sentir-se brasileiro quando se reconhecer que o Nordeste,
designado de “sertão”, é constituído e constitui o Brasil.
O sertão que
Mário buscava conhecer é representado discursivamente por Câmara Cascudo como um
espaço que precisa resistir às influências externas, configurando-se preso às
tradições, marcado por um sertão vermelho, dos cantadores e aboiadores, conforme
se verifica na seguinte passagem de uma das cartas em que mais uma vez a
predicação com o verbo “dever” funcionando como auxiliar modal, marca a
obrigatoriedade de se atribuir ao sertão o valor que lhe foi confiscado no que
diz respeito à questão da brasilidade.
“Se o sr. Gui quisesse reconstruir devia conhecer uma raça que ainda não está cantada e sim
fixada - o sertanejo [...] porque o sertão está morrendo engolido pelos açudes, pisado
pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica”. (LCC, 31)
Na mesma carta:
A casa grande derribou-se. Agora inaugura-se o estilo bolo de noiva com
requififes e pendurucalhos nas paredes.
Vaqueiros? Sumiram-se. Estamos comprando zebu, caracu, hareford etc.
Bicho de comer em cocho e beber parado. Não sabe ouvir aboio nem corre no
fechado da caatinga. Morre a vaquejada e com ela duzentos anos de alegria
despreocupada e afoita. E é pena que o sr. Gui, vindo ao Norte, fique nas unhas de meninas recitadeiras e de garotos
mastigadores de pós de arroz... (LCC, 31)
Se V. [você] vier....Com os
diabos ! Não há literato que lhe ponha um dedo ou lhe cite um livro. V. vem comer, beber, respirar e ver Nordeste. Típico. Autêntico. Completo.
(LCC, 31)
Destaca-se
nesses trechos a maneira como o objeto discursivo (sertão) é atualizado num
processo de retematização a partir de duas designações: Norte e Nordeste. Esse
processo reforça a ideia de que a “típica, autêntica e completa” brasilidade também
se encontra enraizada no sertão nordestino, ameaçada pelo sopro da modernidade,
e, paradoxalmente, essa ameaça, naturalmente, instiga o processo de preservação
desse espaço:
“O
sertão está morrendo de progresso e os termos bons e saborosos vêm à tona como náufragos teimosos”. (Carta 33,
LCC)
A relação de
analogia permite destacar os atributos positivos do sertão, colocando-os em
relação com o objeto “náufragos teimosos”. Nessa assimilação metafórica, o
elemento comparativo “náufragos”, que contém em si a ideia de sobreviventes, é
qualificado como “teimosos”, reforçando a ideia de resistência sugerida na
passagem “os termos bons e saboroso vêm à tona”. Essa resistência é processada
tanto por meio da aspectualização do referente “termos”, qualificado como “bons
e saborosos”, quanto por meio da aspectualização de modo atribuída ao processo
verbal através da expressão “à tona”. Assim, a isotopia do “sertão que morre” é
significativa para a construção da representação discursiva da brasilidade
nordestina, uma vez que essa “morte”, paradoxalmente, funciona como dispositivo
de manutenção das tradições ligadas às práticas sertanejas que devem ser
perpetuadas no discurso constitutivo da brasilidade.
I.V Considerações finais
Uma análise
mais acurada da representação discursiva de Nordeste como espaço de brasilidade
no discurso de Mário de Andrade e de Câmara Cascudo exigiria um estudo mais detalhado
e profundo não somente das cartas aqui apresentadas
como das demais que compõem o conjunto da correspondência trocada por ambos. Entretanto,
os trechos aqui analisados serviram para delinear o nível da representação
discursiva – vista na perspectiva de J-M Adam e demais estudiosos – ainda pouco
explorado, em termos de aplicação empírica, nos estudos linguísticos do texto.
Focalizamos a
representação discursiva de Nordeste como espaço de brasilidade tal como é
proposta como uma das várias representações construídas nos textos estudados.
Para essa análise, partimos das categorias propostas pela ATD para a construção
do sentido textual. Desse modo, foi possível demonstrarmos como as operações de
construção do significado aplicadas pela ATD às proposições-enunciadas
analisadas neste estudo servem para revelar que o discurso de brasilidade é
marcado pelo reconhecimento do quanto o Nordeste é um espaço significativo para
a constituição desse discurso. E ainda para reforçar que a representação
discursiva, enquanto instância de análise das categorias semânticas do texto,
não prescinde de linearidade textual para que se estabeleça uma regularidade de
sentido na construção de uma dada representação.
Constatamos que
o trabalho com as categorias semânticas da ATD se mostrou relevante para o estudo
do gênero analisado, porque permitiu a exploração da construção do significado e
das representações discursivas focalizadas, proporcionando, assim, uma análise
mais precisa dos textos apresentados. Dessa forma, entendemos que as noções
apresentadas podem contribuir de forma relevante para a construção do
significado e sua descrição em material linguístico concreto.
V.
Referências
ADAM, Jean-Michele. A linguística textual: introdução à
análise dos discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Leurquim. São Paulo: Cortez,
2008.
MARCOS,
A. M. (Org.). Câmara Cascudo e Mário de
Andrade: cartas, 1924-1944. São Paulo, Global, 2010.
MARCUSCHI,
L. A. A construção do mobiliário do mundo e da mente: Linguagem, cultura e
categorização. In: MIRANDA, N. S.; NAME, M. C. (Orgs.). Lingüística e cognição. Juiz de Fora: Editora da Universidade
de Juiz de Fora, 2005.
PASSEGI, Luis et
al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual
de sentido. In: BENTES, Anna Christina; LEITE, Marli Quadros (orgs.). Linguística de texto e análise da
conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
p.162-312.
RODRIGUES, Maria das Graças S; SILVA NETO, João G; PASSEGGI, Luis.
“Voltarei. O povo me absolverá...”. A construção de um discurso político de
renúncia. In: RODRIGUES, Maria das Graças S; SILVA NETO, João G; PASSEGGI, Luis.
(orgs.). Análises textuais e discursivas:
metodologia e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010. p. 150-187).
ANEXOS
(Textos
escritos conforme a publicação em livro referendado na bibliografia deste
artigo)
CARTA 07 – MÁRIO DE ANDRADE
Araraquara,
26 de junho de 1925
Luís da Câmara
Cascudo.
Estou sentindo uma dificuldade dos
diabos escrevendo a mão. Máquina de escrever é um horror. Desde que comprei
minha Manuela (nome de minha máquina de escrever) não peguei mais na caneta. Me
acostumei. Agora que vim descansar mês e meio por estes lados cultivadíssimos
[ilegível] Araraquara só cafezal cafezal
não se vê outra coisa na paisagem dos espigões cada nova carta que
escrevo [ilegível], só vendo nem sei mais pegar na pena, ontem até me sujei com
tinta que nem curumim de Grupo Escolar. Manuela ficou jururu lá na rua Lopes
Chaves.
Você nem imagina o gosto que me deu
o campeiro vestido de couro que você me mandou. Andei mostrando pra toda gente
e mais a fotografia do maravilhoso cacto. As três fotografias já estão bem guardadinhas
na minha coleção. Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra
aí dos seus lados. Meu Deus! Tem momentos em que eu tenho fome, mas
positivamente fome física, fome estomacal
de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! se
eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz muito que tinha ido por essas
bandas do norte visitar vocês e o norte. Por enquanto é uma pressa tal de
sentimentos em mim que não separo e nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons e
rúins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. Porém
você compreende demais,este Brasil monstruoso, tão esfacelado, tão diferente,
sem nada nem sequer uma língua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir
íntegro caracterizado, realisticamente? Fisicamente? Enquanto me penso
brasileiro e você pode ter certeza que nunca me penso paulista, graças a Deus
tenho bastante largueza dentro de mim pra toda esta costa e sertão da gente,
quando me penso brasileiro e trabalho e amo que nem brasileiro, me apalpo e me
parece que sou maneta, sem um poder de pedaços de mim, que eu não posso sentir
embora meus, que estão no mistério, que estão na idealização, posso dizer até
que estão na saudade!... É horrível.
Doloroso. Por vezes eu escreve uma coisa simples, dita sem esforço até sem
arte, ninguém sabe o que está ali dentro de grandeza de comoção, de
viabilidade, de amor verdadeiro. Como eu vivo e vibro de ânsia brasileira! Veja
se me compreende este pequenino “Poema acreano” em que disse apenas que
senti de repente e que é indescritível, inobservável em largas
paginas psicológicas porque um desses momentos de angústia amorosa sublime em
que é tão forte a corrente de comoção, tão ansiados os sentimentos, tão contraditórios,
tão interpostos e simultâneos!..... E agora a gente descreve tudo isso com
[vontade]. É melhor dizer simplesmente. [ilegível] for como a gente
compreenderá o dizer:
Poema Acreano
Abancado à
escrivaninha em São Paulo
Na minha casa
da rua Lopes Chaves
De supetão
senti uma friagem por dentro
Fiquei
tremendo muito comovido.
Com o livro
palerma olhando pra mim.
Não Vê que me
lembrei que lá no norte,
meu Deus !, muito
longe de mim,
Na escuridão
ativa da noite que caiu
[Um homem pálido,
magro] de cabelos escorren-
do nos olhos
Depois de fazer
[uma] pele com a borracha
do dia
[Faz pouco se
deitou] está dormindo.
Esse homem é
brasileiro que nem eu.
[Gosta]? Quero que você goste.
Você há-de compreender a ânsia de
compreensão, de união, e interpretação de tudo que é amor que essas linhas
humildes eu não quis gritar. Essa ânsia dolorida já me teria feito andar por
aí abraçando não sei se pudesse. Mas
tenho que ganhar a minha vida aqui, sossegadinho, [ilegível], dando lição e mais
[ilegível]. Porcaria! Ao menos me sobra esta certeza de que ninguém amou mais
do que eu os brasileiros no Brasil . Se não faço nada por eles é porque Deus
não me deu o destino dos fazedores. Assim mesmo vou trabalhando no meu canto e não
tenho vergonha de mim.
Até breve. Escreva e venha por aqui.
Nos abraçamos. Que bruta conversa havemos de ter, nem é bom pensar!
Mário.
PS.
[ilegível] os números que construí. E os anteriores também regularinhos. Gostei
de saber que você (você = tu) está folclorizando. Isso mesmo. Trabalhe e mande
as coisas que fizer. Me interessam formidavelmente , porque são
inteligentes, bem pensadas, ditas com
leveza e graça. Só depois de tudo isso é que me interessam porque são suas, de
amigo. Quando gosto, gosto primeiro pelo
valor. Não misturo amizade com valor. Está certo. Olhe: quero que você leia o
terceiro numero da Estética que não
sei quando sairá. Conhece a revista ? Terei lá um poema, “Noturno de Belo
Horizonte” e uma carta a Alberto de Oliveira sobre os quais me interessa a sua
opinião franca.
CARTA 13 – MÁRIO DE ANDRADE
São Paulo 6 de
setembro 1925.
Luís do coração.
como você é tão bom pra mim!
Cada carta de você é um carinho descansante pra mim, fico feliz. Deus lhe
pague. Hoje é aniversario da minha prima Zilda. Pois ela tem de me esperar se
quiser que tome chá junto com os outros. Hei de responder primeiro a tudo de
você que tenho aqui. Vamos a ver: Primeiro me diga uma coisa, qual a silaba
tonica de requififi? Palavra aguda ou grave, requifífe ou requififí? Outra
coisa: é bem substantivo ou serve às vezes de adjetivo qualificativo
também? Outra coisa do mesmo genero: me
diga si você já escutou por aí a palavra pratita, adjetivo qualificativo
querendo significar pessoa cheia de enjoamento, de não-me-toques. “Fulana é
muito pratita” se fala por aqui.
Quem é êsse Jorge Fernandes,
heim? A apresentação de você está engraçadissima. E o tal Jorge Fernandes me
deixou com água no bico. É bom mesmo. Sensibilidade e inteligência, me pareceu!
“Contrição” um pouco mal realizado desde o “Andou feliz a sentida alma
(sentida alma é horrível. E só pra rimar com calma! Diga pra ele que mande à
merda essa rima e escreva “alma sentida” que é muito bonito.) até “Aos pés”. Essa partinha é um pouco corriqueira
por demais. Resto bom. “Remanescente”
estupendo inteirinho e o último verso é
colossal. “Talvez na guerra contra o Paraguai...” que mundo está nesse verso!
Que achado formidavel. Dê um abraço no Jorge Fernandes. Puxa, que nome feio o dele, não?
Recebi
os índices. Também me puseram agua no bico. Confesso que o livro sobre Lendas e tradições me interessa mais
porque me afeta nos meus assuntos e preocupações mais que os outros. Porém que venham estes e os devorarei. Não
tenho nenhuma autoridade nem sabença em nenhum dos assuntos pra dar parecer.
Digo só que são interessantíssimos. Buda
santo católico me parece francamente mais boutade que outra coisa. O nome do livro é ativíssimo
faz cocega na gente. Terá extração certa. O sobre Lopez me ajudará na minha
sabença de historia patria tão pouco aprofundada.
Tenho inda por responder uma
carta açu (no sentido de beleza) que a gripe fez você escrever... Conte com
minha colaboração pra sua revista e se quiser a de
mais alguém escolha e diga. Tratarei de arranjar. Não sei como vai ser a
revista e fiquei indeciso sobre o tamanho das coisas principalmente prosa a
mandar. Por isso só mando versos agora. Se a revista for do tamanho da Revista do Brasil podem sair todos num
numero só, se for menor escolha o que quiser. Mandarei a prosa depois que
conhecer o tamanho da revista. E ainda se você quer prosa pro 1º número avise
com tempo que mandarei. Estou você pra você, isto é, mande o que quiser. É como
se fosse você mesmo fazendo.
Também fiquei entinado com a coimbrada romântica,
puxa que gente espiritualmente tuberculosa! Não fui na cantoria deles (e parece
que é o melhor que êles trazem) porém em tudo quanto era reunião a que ia,
pronto: lá estavam os corvos. Que túmulos nesta vida tão cheia de vida do nosso
Brasil! Requiescat in pace!
O
tal de Congresso Regionalista me deixou besta de entusiasmo. Em tese sou
contrário ao regionalismo. Acho desintegrante da ideia de nação e sobre esse
ponto muito prejudicial pro Brasil já tão separado. Além disso fatalmente o regionalismo
insiste sobre as diferenciações e as curiosidades salientando não propriamente
o caráter individual psicológico duma raça porém os seus lados exóticos.
Pode-se dizer que exóticos até dentro do próprio país, não acha? É certo no
entanto que regionalismo bem entendido traz beneficio grande sobre o
ponto-de-vista da propria discriminação dos caracteres gerais psicológicos e
outros dum povo. Se a minha adesão vale de alguma coisa aí vai sincera com uma
enorme sodade mandada pra esse Nordeste que amo como eu mesmo, que sou eu. Que
pena eu não poder ir até aí! Se tivesse cobres e descobrisse tempo, ia de
deveras. Como não vou mando estas rabugens pra você: Acho o programa um pouco
acanhado e além de regionalista regionalizante o que é um perigo. Entre as
teses dos “Problemas econômicos e sociais” vocês se esqueceram inteiramente do
Brasil o que acho positivamente um erro. A primeira de todas as teses devia de
ser: Contribuição do Nordeste para a constituição da Brasilidade
psicológica, econômico-social, lingüística
e artistica. Pras pessoas que veem muito largo ou veem amorosamente como é o
meu caso, isso está implícito no programa geral. O malentendido nasceu de
haverem mais noventa-e-nove pessoas que se ajuntaram à primeira. Noventa-e-nove
malentendidos quase sempre é a porcentagem. Veja se corrige isso com tempo. Se
eu pudesse estudar mais seria essa a tese que escolheria ou então furava o
programa falando sobre o “Conceito de regionalismo”. Na “Vida artística e
intelectual” quase com a mesma intenção nacionalizante em oposição à
regionalizante das teses teria incluído: Caracteres gerais psicológicos do
Brasileiro refletidos ou organizados tradicionalmente nas artes nordestinas.
II: Contribuições linguisticas do nordeste para a língua geral do Brasil (lexiologia,
fraseologia, sintática, modismos expressionais). III: Folclore nordestino. Não
vejo bem aonde a gente poderia tratar disso nas teses do Congresso a não ser de
folclore no tratar de festas e jogos tradicionais. E assim mesmo... Aliás
reconheço que nessa parte de vida artística e intelectual vocês se preocuparam
mais com lados práticos que propriamente ideológicos. Em todo caso tudo é
prático em última análise entre os temas que apontei. Porém de qualquer maneira
que seja o Congresso é interessantíssimo e desejaria estar aí. E a sua casa que
você não se cansa de me oferecer em Natal... Como você é bom pra mim! Se fosse possível
não imagine que eu esperaria repetição de convite não. Iria mesmo. Aliás o
convite está aceito. Quem sabe o que virá um dia! Se arranjar jeito irei na
certa passar uns dias com você. Seria só engrandecer esta felicidade de quem
como eu já é monstruosamente feliz. E você faz parte de minha felicidade, Luís.
Te
abraço
Mário.
Mandarei Pauliceia. Briguei definitivamente com Ariel. Vou ver se dou um jeito de arranjar os números dela. Vou ver
se arranjo também um exemplar do Pau
Brasil, um delicioso livro do Osvaldo que não é meu parente. “Se arranjo”,
porquê quero com dedicatória dele e é o
sujeito mais atabalhoado do mundo. Promete tudo de coração, se esquece tem dez milhões de negócios
complicadissimos vai-se embora pra
Europa sem a gente saber. Duma das últimas vezes eu o tinha numa fazenda quando
recebi carta dele de Paris! Chegou ontem mesmo de Paris. Viaja hoje não sei pra
onde. Estará no Rio na semana que vem, Está em vésperas de nova viagem pra
Europa. É fantastico. Pau Brasil que
já conhecia e reli hoje de manhãzinha é pra mim o melhor livro dele. Poesia genuína
no sentido de lirismo. É lógico: a feição dele é o lirismo meio cômico, às
vezes cômico por inteiro, divertido alegre de sujeito que come como você não
imagina, passa bem é feliz dentro de todas as vicissitudes macotas que lhe têm
enriquecido a vida. Porque também ele é um pouco malabarista das vicissitudes.
Brinca com elas e se diverte. A Primeira parte são frases tiradas de cronistas
e arranjadas juntas. É um dos achados líricos mais soberbos e ricos que nunca
se fez. Que coisas lindas conseguiu construir com frases de Gandavo, de Fernão
Dias, de Frei Vicente... Você verá. Ciao.
E mandarei uns exemplares da Escrava. Distribua se quiser.
CARTA 31 – LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
26 de junho de
1926
Em Natal.
Mario de
Andrade.
Sempre
lhe direi que recebi sua carta e que outro leu por mim o sr. Plínio
Salgado. Estou ciente da defesa ao sr.
Gui e com o agravante de não ter sido atacado. Direi a V. que Raça é
tronco de raminho fino. Laranja muito
doce fica seca. Raça é um coração num
corpo sem pernas. E se você entender penas em vez de pernas , não se engana muito. Se o sr.
Gui quisesse reconstruir devia
conhecer uma raça que ainda não está cantada e sim fixada ¾ o sertanejo. E era pra vir dentro duns trinta meses porque o sertão está
morrendo engolido pelos açudes, pisado pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica. A
menina que eu vi reparando na gente pela fricha da porta, vive na capital, usa
sapatinho vermelho e está ensinando shimmy às primas da fazenda.
A casa grande derribou-se. Agora inaugura-se o estilo bolo de noiva com
requififes e pendurucalhos nas paredes.
Vaqueiros ? Sumiram-se. Estamos comprando zebu caracu, heresford, etc. Bicho de comer em cocho
e beber parado. Não sabe ouvir aboio nem corre no fechado da caatinga. Morre a
vaquejada e com ela duzentos anos de alegria despreocupada e afoita. E é pena
que o sr. Gui , vindo ao Norte, fique nas unhas de meninas recitadeiras e de garotos
mastigadores de pós de arroz...
Se V. vier... Com os diabos! Não há literato
que lhe ponha um dedo ou lhe cite um livro.
V. vem comer, beber,respirar e ver Nordeste. Típico. Autêntico. Completo.
Depois pode V. retomar o passo lerdo para ouvir besteiras e safadices dos
nossos jumentos e guaxinins poetadores.
Verdade. V. foi terrível com o
Lobato. Impiedade aquele nome a 1800 e punhados.
Estou solidário quanto ao sr.
Marinetti. Este senhor está parado em 1909.
Eu tenho a impressão que existe
certas imobilidades leves e que parecem demorar pouco na inércia. Uma mulher
parada, um aeroplano pousado, uma galinha presa por um pé, têm um aspecto de
passo, de voo, de salto quase imediato. Outras coisas não. Um Buik, um Cadilac,
um Paige, atolados na lama dão a ideia de não sair mais nunca. O sr. Marinetti
atolou-se num “estado imóvel”. Quando sai é guinchado nas
rodas e barulhando pelos palcos a tanto per
capita.
A vaia de São Paulo é idiota. Foi as
avessas daquela de 22 na “Semana de Arte
Moderna”. Tempo turuna ! Quando cheguei aí. S. Paulo cheirava pólvora
e a capa arlequinal do Paulicéia Desvairada era uma bandeira esfregando as ventas da
Villa....Como se chamava? Ah....Kyrial ? ou Mariana ?
Agora.....Marinetti, tempestade prevista
pelo observatório Viggiane é , apenas, um rastá
pisando o secular faire l’Amérique.
Quando V. publicar artigos em
qualquer jornal e sobre qualquer tema, mande-nos se for possível. E a Gramatiquinha da fala brasileira? Não deixe este título se evaporar. Faça a gramática.
E deixe o bilhostre quadrupedar pela jumentice alheia.
E aceite os bons dias! O clarim do
Esquadrão da Cavalaria está tocando alvorada. São 4 horas da loira madrugada e
Febo desperto mandará Aurora dos róseos
dedos levantar a fímbria do horizonte
numa leve carícia luminosa. Famoso!.........
Abraços do
Luís.
V. recebeu
versos e revistas ?
Não sei se lhe
mandei o artigo incluso.
CARTA 33 – LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
8
de agosto de 1926
Em
Natal.
Mário
de Andrade.
Cheguei ontem do sertão onde fui no
séquito de José Augusto receber o sr. W. Luís.
Trouxe muita poeira e uma impressão que V. lerá depois. Tive, depois do
banho e do jantar, o prazer do fumo e de sua palestra. V. teve razão do
“atabalhoado” da “Sistematização”. Para equilíbrio não o [possui] sobre o
oblíquo das frases que escrevi . E por
sinal —
V. é um grande traidor. Versos como
aqueles não se publicam, seu Mário, guardam-se ou esquecem-se. Estou oscilando
entre a cólera e o agradecimento. Vou explicar por que escrevo certas palavras
em letras espaçadas e oblíquas. Por
ideografia pictorial ( ? ! ) V. continua a esperar a colaboração do leitor ao
jeito de Baudelaire e Conrad? Eu, dentro
do possível, tento despertá-lo por uma visão gráfica, uma sigla que o ajude na associação de ideias a
pensar no objeto descrito. Devagar,
lento, e escorre escritos desta maneira
traduzem o tema numa expressão quase sensível. . V. não tem feito outra coisa com seu estilo
tamanduá-bandeira senão “obrigar” o
leitor a “ver” menos do que concordar (
que é uma questão secundária ).
Mando uns recortes. O “Dom Pedro II” é o começo do artigo cuja segunda parte versa
sobre a
Escrava que não é Isaura de Débora
do Rego-Monteiro. Deus lhe pague o catálogo de Dona Tarsila com o formosinho
açúcar-cândi de Cendrars. Hoje, (domingo), o sr. W. Luís tomou conta
das horas. Tive almoço a 150 talheres, tive recepção, passeio fluvial, visitas
e às 7 um jantar horrendo entre pessoas graves e analfabetas. Tenho fugido o que posso das festas. Não sei se V. é assim. Detesto-as cordialmente.
Multiplique o horror pelo número dos discursos.
Pense que o chamaram (ao W, Luís
) —
Bandeirante da Política Brasileira e esta frase está impressa num botão de celuloide com o retrato bigodudo e duro do ex-donatário
da Paulicéia .
O estudo que lhe agradou — sobre
a cidade do Natal —
pertence a um livro de reconstruções históricas. Chamar-se-á
Figuras de velha memória se Deus for servido. Estou muito triste por não poder realizar o
meu trabalho de imaginação. O acaso tem
me fornecido notas de tal maneira preciosas que sou um dos raros conhecedores
do velho passado potiguar. É um desserviço
a minha terra engolir estas notas ou deixar que se escreva errado o que se passou
direito e vice-versa.
Não
esqueça de ir pensando na Gramatiquinha da fala brasileira. O Sertão
está morrendo de progresso e os termos
bons e saborosos vêm à tona como náufragos teimosos. V. deve recolhe-los
repetindo Noé. V. sabe — não
faltaram animais de toda casta em casal de cada família segundo sua
espécie. A Gramatiquinha será — no mínimo
— um
berro de alarme. E aqui se diz — Por
falta de um grito perde-se a boiada.
Estamos arriscados a perder muito mais do que chifres e cascos, coices e
caudas.
V. fala de Amar
e de Primeiro andar e onde paira o Clan
do jabuti bicho de minha espécie deferência
e estima? V. é um anunciador de títulos
despertadores de crônicas. Cada um deles vai pedindo um artigo . Vez por outra
escrevo um e guardo. Na outra carta V.
não fala no livro e eu rasgo o artigo. E assim sucessivamente.
Não tenho visto o Jorge Fernandes.
Vem raramente aonde o posso encontrar.
Conversamos pelo telefone. Jorge
está tratando do livro que você receberá no original para ver o que sai. Depois
publicar-se-á para escandalo dos manes
de Segundo Wanderley. O sertão deu-lhe
uma boa parte do trabalho.
Não pense em mim nas dedicatórias.
Destribuas em troco miúdo de estima impressa entre os mais apresados. Eu tomo o
que é meu em V. —
uma parte grande de espírito e de pensamento . Nós, de bem e de mal, estamos independentes de provas tipográficas
para indosso à aliança . V. entendeu ? Pertenço aos de casa. Primeiro no
coração e último na mesa.
E
dê um abraço a
este seu
Luís da Câmara Cascudo.
[1] Para maiores informações sobre
essas categorias, conferir o capítulo 3 de Adam (2008). Por ora, é suficiente
apenas citá-las, entretanto suas noções serão aprofundadas na tese de
doutorado, momento propício e necessário para tal procedimento.
[2] Referência ao 1º Congresso
Regionalista do Nordeste, evento realizado em Recife entre 7 e 11 de fevereiro
de 1926, do qual Mário de Andrade obteve
o convite-programa desse evento.
Parabéns pelo artigo, professora Cristiane! Muito bem escrito. Faz um importante resgate da cultura nordestina.
ResponderExcluirParabéns Cristiane a escrita deste texto mostra a sua competência na arte da interpretação e da escrita, além do compromisso (pessoal ?) em resgatar, através do registro escrito, as maravilhas literárias que envolvem a cultura nordestina. Grande Mestra!
ResponderExcluirFrancisca JOseni dos Santos _ Professora
Obrigada, Joseni e Gilberto. O resgate é a forma de reconhecimento dessa cultura tão rica e bela, mas que precisa sempre ser lembrada para que não seja suplantada pelas muitas outras manifestações culturais, algumas nem tão belas e maravilhosas como a nossa, embora saibamos que todas tenham, de algum modo, seu valor.
ResponderExcluirCristiane Praxedes Nóbrega