sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

PEDAÇO DA VIDA



 PEDAÇO DA VIDA


Prepara-se para encerrar o expediente olhando os e-mails e torcendo para que não cheguem mais. Final de ano, com o recesso do tribunal, as demandas esfriam. Desliga a impressora e o ar-condicionado desviando o olhar para quem será que colocou um rolo de papel higiênico em cima do birô? Viu agora também uma revista de moda feminina solta pela mesma pessoa que precisou ir ao mictório pela manhã, deve ter sido.

Espera pelo relógio mais um pouco escutando a sala vizinha se arrastando em tamancos. Muitos até logo vão sendo ouvidos enquanto observa que o celular comeu muita bateria porque aproveitou para cantar e gravar no WhatsApp. Com pouco movimento, ou se faz uso da arte ou endoidece. Deve ser para isso que ela serve. 

Estou tentando me lembrar! Ou está dentro do armário ou em cima do balcão, escuta uma voz feminina falando ao telefone com alguém de casa. O radar está ligado assim como escutam tudo que acontece nas salas divididas com madeira. Uma risada ou segredos são todos socializados quer se queira ou não. Cuidado para não esquecer o estabilizador ligado diz a chefe em lembranças apontando também para as lâmpadas acesas.

Com a chave na mão, apaga tudo e sai sem avistar um pé de pessoa no corredor. Uma árvore de Natal apagada num canto começou a piscar. Caminha para o sanitário e urina na pia. É, gosta de transgredir as regras, principalmente quando não tem ninguém olhando. É antiético e assume. Na falta de papel toalha, seca as mãos na calça, afinal de contas hoje é dia dela ser lavada. Vai sair do banheiro já pensando em ter que desejar boa-noite para a recepcionista. Ela é tão prestativa a senhorinha que deseja o que ele pensou sem olhar para a outra que vem satisfeita por ter chegado ao final do expediente sem ter tido um AVC. Sim, porque um dia desses a SAMU teve que levar um que caiu na sala com raiva de um colega.

Chega ao pátio já quase todo escuro, o pátio claro. Um avião lhe chama a atenção no alto com um comandante farto de tanto andar no ar. Aquele queria ter uma vida como seu observador que também gostaria de trocar de lugar. Nunca se está satisfeito, essa é a regra na maioria das cabeças humanas. Seria bom se todos pudessem ser tudo sem precisar de treinamento. 

Entra no veículo e responde às trezentas mensagens dos compradores querendo saber sobre o carro e o computador expostos à venda. Prepara-se para ligar o veículo com o celular debaixo da perna esquerda. Na verdade, o que ele tem debaixo da perna é um canivete, mas para que ninguém saiba que ele anda fortemente armado, preferiu dizer celular. Toca na chave sentindo um pouco de fome planejada, pois nem trouxe o pacote de biscoito que estava fazendo aumentar a saliência por cima do cós da sua calça. Sempre está lutando contra seu apetite, senão as roupas terão que ser doadas e não está a fim de gastos desnecessários. 

A esposa passa uma mensagem: "Cadê o meu lindão, tá perto, tá perto, tá perto, Kkkkkkk." Ela é só um pouquinho estressada, mas nada que a tarja preta não resolva. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.12.2023 - 18h34min.



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