quarta-feira, 19 de abril de 2023

 


PLASTIFICADO


Não tenho o que dizer, mas quem sabe, lá frente, pelos estímulos das palavras que vão surgindo, apareça algo digno de registro. Escrever é como... sei lá! Nem comparação consigo fazer. Começa-se sem muita vontade, e quando se olha está pronto um texto que serve para entreter. Um dos segredos é apagar o que foi escrito no início, no caso aqui foge à regra, e se iniciar a partir do segundo parágrafo, ou do terceiro, ou até da última linha. 

Muita gente prepara um “pré-texto” e “manda brasa.” Quero falar sobre isso ou sobre aquilo e dá certo. Comigo é diferente. Se fizer assim fica uma porcaria, e mesmo quando consigo há muita “faxina” envolvida. Tenho que pesquisar quem disse o quê para não achar que estou descobrindo a roda, por isso o porquê das minhas “voadas.” 

O desafio de materializar pensamentos por escrito, mexe com a pessoa. É um porcelanato que se está colocando na parede, um filme, um cozido queimado, isso tudo vai sendo moído no “liquidificador mental” para ver se sai o caldo, e quando sai, coa-se em várias retificações, acrescenta-se temperos sonoros até chegar ao ponto de ser apresentado a mentes afiadas.

Certo dia, estava eu desesperado a ponto de pensar em escrever somente para mim, sem pontuação, sem referências ou seguindo o padrão de aceitar erros e acertos com a mesma naturalidade. Ledo engano. Minha doutrinação de mais de vinte anos estudando entrou em ação reivindicando “um lugar ao sol.” Nada de escrever “estruprar”. Até mesmo o computador corrigiu e eu me dei por vencido. 

Vi que estamos cercados pela doutrina da língua. Quem conseguiu escapar, tudo bem, mas quem já experimentou as torturas impostas pela escola, sente-se mal quando vê um erro na grafia ou na pronúncia. 

Eu estou nessa segunda classe de pessoas que vivem aprisionadas ao que foi jogado de goela abaixo desde o momento em que me forçaram a dizer mamã e eu só conseguia dizer papá. Deve ser por isso que tenho tanta dificuldade em entender outras línguas. Meu consciente diz que xícara é xícara e que quando alguém se refere ao mesmo objeto em Árabe, não consigo entendê-la.

Já foi dito que se entregassem um bebê a um behaviorista este transformaria aquele num ladrão ou num juiz, num pistoleiro ou num médico, bastava querer. Eu fui entregue às “professoras gritadeiras” que se a pessoa errasse alguma coisa ministrada em sala, era um “Deus nos acuda.” “Você vai para a diretoria.” Isso era o mesmo que ir preso. “Vai ficar de castigo.” Os outros alunos ficavam de lá balançando a mão e achando graça. Na hora do recreio estava eu lá, olhando para a indiferença do pessoal que habita aquele lugar estranho cheio de móveis com gavetas, canetas em cima dos birôs, estantes para guardar fichas... uma verdadeira tortura para quem odiava ficar quieto.

Os anos vão se passando e se a pessoa não se adequar ao padrão imposto pela aprendizagem, continua a ser motivo de chacota. “Você sabe isso ou aquilo?” e a pessoa tem por obrigação se inteirar para não ficar só respondendo “não” e vendo o outro olhar com cinismo para nossa falta de noção.

O conhecimento hoje em dia é fundamental até para saber que quem gosta de canela em pó está comendo insetos e barro moídos junto com a casca da planta que dá nome ao produto, e assim vamos nos tornando refém de feijão com arroz porque tudo que é gostoso ofende. 

Conhecimento e pensamento andam de mãos dadas objetivando transformar tudo em produto. O pensar, por exemplo, cada dia vai se tornando algo possível de ser feito em série, é tanto que já está sendo aperfeiçoada a máquina que irá produzir textos a cada apertar de botão.

Sempre pensei num mundo onde as tarefas como plantar e colher seriam feitas por máquinas, mas nunca pensei que o próprio pensar também fosse automatizado. Daqui a pouco, vou publicar somente o que for produzido pela máquina que estou adquirindo para pensar por mim. Muita gente vai logo perceber porque não existirá os “não sei o que dizer,” “acho que” “parece...” Jamais a inteligência artificial produzirá um texto com essas dúvidas. Não sei se será “muito legal” ver uma trama humana sendo narrada como um manual de eletrodoméstico, tipo: “a jovem brilhou o olho ao avistar o rapaz porque os hormônios acionaram o mecanismo que a faz ter a certeza que aquele pode engravidá-la. Então, sua vagina começou a ser lubrificada preparando-se para facilitar a penetração, e o primeiro passo foi ela encostar sua boca na dele para sentir o gosto e o cheiro analisando se o produto chamado bebê será sadio”

Vamos esperar para ler.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.04.2023- 06h54min.



2 comentários:

  1. O que dizer nesse comentário? Gostei de suas reflexões acerca das restrições comuns a todas as línguas, inclusive à do Dalai Lama. De fato é uma doutrina severa esta que estabelece os pecados linguísticos e pune e segrega os transgressores. Parabéns por mais estas divagações literárias improvisadas. - Gilberto Cardoso

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  2. Obrigado Gilberto por dar sinais de vida. Às vezes sinto-me no deserto viajando em um ônibus repleto de câmeras sem que eu possa ouvir uma pessoa dizer: vá devagar que ali tem uma curva perigosa.

    Cada texto que é produzido é como se uma encomenda fosse deixada no endereço sem que nunca mais se possa voltar lá para saber como estão as pessoas que foram agraciadas com o presente.

    O papel do motorista solitário é esse mesmo: ir trocando de marcha, parando, descarregando e partindo para o próximo endereço sem saber qual desvio tomar, mas é muito, muito prazeroso quando um dos destinatários responde que recebeu a encomenda em perfeito estado de funcionamento e que está fazendo bom uso dele.

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