sexta-feira, 21 de abril de 2023

DRUMMOND AVISOU

 



DRUMMOND AVISOU


A pedra, literalmente, estava no meio do caminho. Caiu de um caminhão que passou agorinha mesmo, disse um homem sujo com a mulher e uma criança também com roupas agregadas de areia pedindo esmolas no pé do poste. "Não deu para eu tirar porque era só carro passando..." justificou-se indo buscar o "abençoado" paralelepípedo e colocando-o perto da parede. 

Estourou?, perguntei ao homem do bugre que viu tudo. Sim, pode ir olhar. De fato, o pneu permanecia vazio e rindo da minha cara por ter sido o responsável pelo atraso do jantar.

Venha mais para cá que ficarás protegido do trânsito, falou um cidadão que vendia passeios turístico. Foi o que fiz depois de ter tirado o estepe da mala. Ainda bem que não estava chovendo e a calçada permanecia bem iluminada. Naquele momento, veio-me à lembrança de quando fiquei em meio a uma “noite escura cheia de lama.” Em comparação, ali estava um “céu,” apesar do "estrago pneumático."

O coroa quer ajuda?, perguntou-me um jovem que fazia parte do grupo de vendedores. Pode ser! Não faltava nenhum parafuso para ser desparafusado e ele não conseguia retirar a roda. São cinco parafusos e aqui no chão só tem quatro. O homem de barba o chamou e fiquei sozinho na tarefa. Era o seu gerente que na certa disse que ele estava se distraindo. Mesmo sozinho, consegui arrancar fora. Quebrou um parafuso, e se foi assim... retornei para perto do mendigo querendo achar a porca e o resto do que sobrou. “O canto mais limpo.”

É, torou! Voltei e continuei a moer a "manivela do macaco." O bom é você ter um pedaço de madeira para calçar, deste tamanho ó!, disse um homem fazendo gesto nos dedos indicadores e fechando com os polegares de forma quadrada. Lá no Pará, eu usava uma tábua de ipê, assim ó! 

Nessa hora, percebendo sua mania de dizer “ó”, dei um sorriso planejado para ele ver que, apesar do sinistro, eu conservava o bom-humor. 

Eu sempre vinha pelo "lado sadio da rodovia," contudo hoje resolvi passar pelo meio da faixa tripla. Jamais imaginei que uma pedra fizesse um "estrago tão ensurdecedor" ao se digladiar com um "pneu metido a besta." Bem que eu, ultimamente, estava notando uma energia negativa à minha volta. 

Hoje, por exemplo, acordei suando por ter sonhado com uma "macumbeira" querendo ler meu futuro. Eu me aproximei dela e, logo que eu estava ao alcance da sua voz, ela sugeriu uma "consulta na minha carteira" chamando, para perto dela, as outras pretas jovens. Quando ficou de costas para mim, abri os olhos. Eu já estava me sentindo “meio estranho” com o olhar dela grudado ao meu naquele pesadelo. No de ontem, ela surgiu sentada em cima de uma "anaconda do pântano," e isso tudo era "a senha" para que eu desconfiasse na base do "aí tem coisa!"

Desde que saí para o trabalho, percebi um clima tenso sem que houvesse qualquer motivo aparente, só que não dei a devida importância. É bom você usar uma mão de força, falou novamente “o cabeça branca." Fica mais fácil! Ah, tá! 

No momento em que eu estava "moendo parafusos" com a chave de rodas, entrei num túnel para repassar todo o trajeto que fiz até acontecer aquilo. Dava a impressão de que o mundo havia parado diante daquele pneu estourado. Não tinha forró sendo tocado; os veículos congelaram na pista e as “tropas de gente” deixaram de trafegar. 

Nesse transe, encontrei buda dizendo “calma” e que eu prestasse mais atenção, pois até no caminho mais vigiado do mundo há uma filial da morte dando plantão; avistei Gandhi vindo com sua roca de fiar na mão, e quando passou perto de mim disse sorrindo: quer trocar de lugar? E aí? Aprendeu o quê?, perguntou-me Sócrates com um copo de cicuta na mão. Aprendi a não morrer de desgosto, disse girando a chave na ignição e partindo receoso do parafuso a menos segurando o pneu de reserva promovido a titular. 

Cheguei em casa e olhei para a pia. Quem sabe, se eu tivesse lavado aquela louça impregnada de graxa de guiné, nada disso teria acontecido; ou se eu não tivesse me distraído com o celular dizendo vire à direita a tantos metros... Mas será que não foi o mendigo que jogou a pedra? Motivos ele deve ter de sobra para se vingar da classe média que passa sem dar esmola. Amanhã vou recolher a pedra e, se puder provar, o mendigo também vai junto no camburão.

Ao deitar-me, veio-me as elucubrações: bem que eu já vinha desconfiando que o universo estava conspirando para que eu comprasse pneus novos, porém nunca pensei que contrariá-lo saísse tão caro. 

Logo cedo, fiquei pesquisando os valores. Encontrei o melhor valendo duas vezes mais. Não tem problema, desde que aguente paralelepípedos, pensei, mas antes dirigi-me à borracharia. 

Não dá para consertar, pois o buraco é transversal. Se fosse aprumado, dava. Eu nem sabia que buraco transversal era mais difícil do que buraco reto. Também quebrou um dos parafusos. Quem consegue extrair é aquele mecânico ali. Bom-dia! Pode dizer! Se o senhor não tivesse muito ocupado eu ia falar sobre a extração de um parafuso da roda. Não posso, murmurou o mecânico por baixo de uns óculos com armação preta e as palmas das mãos da mesma cor.

Meu patrão! Venha olhar este aqui! Dou por duzentos!, disse o borracheiro ainda com os dentes no lugar e fazendo questão de apresentá-los bem escovados. Obrigado, mas vou em frente. 

Meu cuidado era que o pneu do estepe não se furasse antes de chegar ao pronto socorro dos automóveis, caso acontecesse, teria que chamar o guincho. Consegui chegar são e salvo com o intuito de comprar apenas um pneu. Depois de averiguarem, constataram que seriam necessários quatro pneus novos já que estavam todos além do permitido pelo CONTRAN. Aproveitem e troquem também o óleo, os filtros etc. 

Onde se almoça por aqui? Ali ao lado. Não gostei do careca que não respondeu ao meu aceno quando cheguei ao quiosque, e fui procurar outro lugar onde não existisse pinguços “tirando onda” uns com os outros. 

Aqui tem restaurante? Tem, mas é muito caro. É melhor o senhor ir naquele acolá. Fui. O preço é doze e também pode ser no peso. Quem faz o prato executivo são as meninas. Tudo bem! Quer peixe? Tem espinhas? É posta. Ainda bem que o “p” não foi trocado pelo “b”. Subtraí doze da minha fortuna e voltei para a oficina com a barriga "estourando."

E aí? Uma boa notícia circulou por aqui. Opa! finalmente! Não vai precisar trocar o rolamento porque o mecânico conseguiu extrair o parafuso. Eu podia ter dito que o cubo estava condenado, mas sempre vejo o lado do cliente. Ah, muito bem! Se o senhor puder me gratificar. Qual o pix?  Tal e tal. 

Por que estes pneus só duraram quatro anos? Tem que calibrar de acordo com o manual. Se colocar uma libra a mais o desgaste aumentará, substancialmente. E outra, tem que fazer o alinhamento e o balanceamento a cada sete mil quilômetros, o rodízio também, senão só dura a metade, disse-me, já na saída, o vendedor “da roda preta.” 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.04.2023 – 20h47min.



3 comentários:

  1. O bom de quem alimenta sua imaginação com literatura é isso: os momentos mais mesquinhos podem se tornar inspiradores.

    - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Verdade Gilberto. O corpo sofrendo e a mente tirando proveito, essa é a vantagem de quem vive à cata de aventuras para rechear a realidade imaginativa, no caso, o mundo virtual passa a ser a própria realidade e a realidade chega como um sonho. Inverte-se os papeis em prol de transformar as dificuldades em facilidades, e isso nos faz, os escritores, pessoas com a "obrigação" de nos manter sempre querendo encontrar motivações para amenizar a nudez e a crueldade da rotina.

    Lembro-me que no tempo em que “tirava” meu expediente em uma delegacia de polícia, havia um cidadão que deu motivo para ser preso só para registrar em livro o seu dia a dia. À época, nem dei valor àquela iniciativa, e agora, depois de uns quinze anos, é que posso dizer que consegui entender aquela postura radical, mesmo não tendo vontade de seguir o mesmo caminho.

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    1. Que experiência interessante, Heraldo. - Gilberto Cardoso

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