quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O MAL TRAVESTIDO - Heraldo Lins

 


O MAL TRAVESTIDO

Não era louca, isso tinha certeza, pois fora ao médico e apenas um pouco de frustração a tornaria equilibrada, disse ele. Sempre se sentiu realizada em tudo que fazia, porém já tinha escutado, por várias vezes, que era melhor levar a vida um pouco mais a sério, pois nem só com satisfações a vida pode ser assim vivida. Estava se tornando cada vez mais difícil aceitar que sofrer, viver triste ou mesmo deixar de sorrir, era o padrão humano. 

Até em ver um cachorro latindo dava-lhe vontade de gargalhar, inclusive quando um urinou em suas obras de arte, ao expô-las na praça, ela apenas o espantou caindo numa crise de riso. Ali mesmo, tocou fogo no que restou e foi embora rindo. Arrependeu-se por não ter entendido a mensagem do além. Depois foi que lhe veio à mente que aquele cão estaria sendo enviado por outros espíritos artísticos para dar o toque que faltava na tela.

Ela sempre encontrava o lado bom das coisas. Tentara aplacar as dúvidas dormindo debaixo da cama, deixando de comer ou ficando em pé durante horas apenas em uma das pernas. Todavia, seu corpo febril permanecia em êxtase animado. Sua pele se renovava quando passava pelo que os outros chamavam de sofrimento. 

Saiu do chuveiro com algumas queimaduras, mas isso logo foi sarado; meteu os pés numa porta apenas para se curar de uma frieira; regulava a temperatura de tal modo que quando estava diante do fogo, ficava fria e, no freezer, esquentava. Isso ela sempre fazia para testar a capacidade de adaptações. 

Escutou muitos discursos negativos, entretanto dizia que era melhor que fosse mesmo de outro mundo. Sua mente adquiria logo o conhecimento a que se propunha a aprender como uma fornalha alimentada com galhos secos.  Um velho, uma vez, havia lhe dito que aproveitasse o momento para segurar a vivência, e isso ela nem precisava se esforçar. Todos os acontecimentos surgiam em sua mente na hora que precisava relembrar algo, é tanto que orgasmo real ela sentira uma única vez, e a partir daí bastava pensar na sensação que o fenômeno se repetia, deixando-a totalmente independente quanto a uma companhia.  

Lembrava-se de como chorar, e fazia artisticamente. Bastava querer, até lágrimas saía. Enquanto chorava no palco, ela ficava olhando pela brecha dos olhos para ver a reação da plateia. Todos entravam no mesmo transe e choravam junto. Então, aquilo era uma prova de que os sentimentos poderiam ser expressados, independentemente de ser real ou não, já que a mente não sabia distinguir algo acontecendo ou imaginado. Quanto ao toque, servia apenas para potencializar as reações.  

Por conhecer e dominar todos os sentimentos, optou em permanecer sentindo alegria. Com o passar dos anos foi entendendo que rir num velório não era o padrão, então nessas horas ela chorava junto com a família do morto a ponto de ser convidada para a função de carpideira. Ela dominava os músculos da face e até sabia fingir que estava com febre, medo ou depressão, e essas várias faces passou a ser seu maior divertimento percebendo que as pessoas agiam de acordo com o que viam nela. Os amedrontados, por não entenderem como uma pessoa fica feliz diante das catástrofes, imploraram pela sua morte. Ela tentou resistir achando engraçado, porém foi avisada para não entrar na horda dos desmiolados. 

Ficou acuada em sua casa estudando qual emoção escolheria para aquele momento. Outras, que imploravam por suas vidas, já estavam presas por seguir aquele sentimento proibido em tempos tão difíceis. De repente, veio-lhe na mente a inspiração que deveria sair, e dessa maneira agiu. Ao abri a porta, os da frente caíram na gargalhada, mesmo assim executaram o que o chefe, mal resolvido, havia determinado. 

Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 12.01.2023  - 13h11min






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