sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

EXCLUSIVO - Heraldo Lins









EXCLUSIVO


Moro debaixo de um viaduto com os outros. Agora, mais do que nunca, aumentou a população dos sem-teto, sem-comida...  Somos todos irmãos no quesito “sem alguma coisa”. O bom daqui é que é no centro da cidade onde passa ônibus a cada minuto, não tem goteira e fica a poucos metros da farmácia, padaria... e, para ter acesso a tudo isso, nem precisamos trabalhar. O que não é muito bom é quando passa alguém e joga merda na gente. Tirando isso, o resto “tá de boa”. 


Nossa comunidade é preenchida por dez homens e cinco mulheres, só que tem dia que elas estão disponíveis sem que tenhamos disposição, diante da fome, para enfrentá-las debaixo do papelão. Elas ficam viçando e chamando a gente de mole. Ninguém é de ninguém, e ao mesmo tempo ficamos sendo todos de todos quando um traz comida, droga ou cachaça. Estamos sempre alerta para o que vier. 


Aqui não perdemos tempo em saber quanto está o dólar, gasolina e outros itens desnecessários.  Do meu canto, vejo as meninas que passam bem vestidas indo para a escola. Ah, quanto eu queria ter aprendido a ler. Não podia! Filho de pobre era para ficar plantando para os filhos dos ricos comerem, e achávamos que isso era normal. 


Pela redondeza, muitas vezes falta comida, mas me disseram que se eu matar uma dessas estudantes eu irei parar em um lugar onde não falta comida, colchão quente, lençol e banho de sol. Eu sei que lá tem estupros e faca no pescoço, mas aqui não é diferente. Às vezes chegam uns mais jovens com facas na mão obrigando a gente a passar as drogas, cigarros e os trocados que arranjamos. Ontem mesmo, deram uma surra num velho que não tinha conseguido esmola. Ele estava com febre e não teve como ir mendigar, e à noite, quando chegaram, o coitado não pode nem gritar de tão fraco que estava. Chamamos o rabecão que levou o corpo. 


Agora vamos ter mais cuidado, e eu até já preparei uma estaca com ponta dos dois lados e deixei aqui por baixo do monturo. Se eles vierem hoje, vou empurrar a estaca na barriga deles. Tem que ser ligeiro senão morre-se, mas eu já armei a estratégia. As mulheres irão seduzi-los levando-os para o papelão, e, quando menos esperar, iremos arrancar a cabeça dos três. Eles são dispostos, portam facas, mas somos dez. Não tem como eles escaparem, além do mais há a conivência das mulheres. Fico imaginando se esse magote de frouxo derem para trás, aí fica difícil para mim e preto ligeiro. Muitos dos nossos passaram a vida sendo capacho de branco, e até para se defenderem sentem medo.  


Já cavei um buraco e cobri com gravetos, como eu fazia lá no sítio para pegar preá. Botei um bocado de cacos de vidro e vou empurrá-los para dentro, depois é só meter o ferro na cabeça. Logo teremos mais facas para enfrentar outros que vierem, e quem sabe, tomaremos o dinheiro também. Aqui é um campo de batalha que quem fica passando em seus carros de luxo nem suspeita que tem guerra por trás do lixo.


Para piorar, ontem veio uma assistente social dizendo que teremos que desocupar a área nos próximos dias. Uma mulher até cheirosa. Nem sei o que ela disse porque enquanto ela falava eu ficava imaginando chupando seus peitos. Ela era bem fofa, não era como essas mulheres daqui que são chupadas. 


À noite, tenho perdido o sono. O menino que nasceu essa semana chora que já me deu vontade de sufocá-lo. O danado sofre abstinência de crak e a mãe continua a fumar. Ele chora o tempo todo e eu saio para comer minhas coisinhas um pouco afastado para não dividir com eles. Ela que teve que cuide. Não posso dividir meu pão com quem não sabe nem pedir esmola. Ela disse que eu era muito ruim por não querer dar meu blusão para aquecê-lo. Por mim pode morrer. Nunca ninguém teve pena de mim, eu vou ter desse moleque sem pai. Se lasque pra lá. Ainda bem que ela nunca me deu, senão ia dizer que eu era o pai. 


Todo mundo queria um pedaço do pombo que matei de baladeira. Dei só os fatos. Dizem que quem come pombo morre com câncer, e eu com isso? É para morrer mesmo, comendo ou não pombo o cara morre, só não posso é ficar com fome tendo um bando deles voando por perto. 


Acidentei-me quando fui pular um muro. Fiquei mancando sem poder sair de tanta dor, e ninguém me dava nada. Sofri sem o pão que o diabo amassou. Depois daquele dia, percebi o quanto estou sozinho no mundo, então matar e morrer pouca diferença faz. Prefiro matar, não que eu tenha medo de morrer, é porque me dá prazer enfiar a faca e ver o cabra estremecer. 


Estou foragido, mas ninguém nem suspeita que tenho mais de vinte mortes na "cacunda". Dizem que quem mata anda com o espírito do morto nas costa, então deve ser por isso que sinto minha cabeça rodando. Uma falta de disposição que só tenho vontade de ficar deitado. Só saio quando aperta a fome. 


As meninas do colégio já me conhecem e me dão o lanche. Sabem que outro não vai mexer com elas, mas se não me derem eu mesmo mexo. 


Quebrei o pé em uma briga e o bicho dói que é uma desgraça. Quase não durmo com o osso pinicando. Sofro também com gonorreia que peguei de uma safada que viajou para o inferno recentemente. Fica supurando, mas já estou quase bom com os comprimidos que a fofa me deu. Ela vem sempre por aqui dar assistência a quem precisa. Mesmo ela sendo boazinha, quero lhe fazer o mal. Penso em amarrá-la e ir comendo, aos poucos, perna assada. Ela é tão branquinha que dá água na boca. Vou ter que parar de falar porque estou vendo que os cabras estão vindo. 

 

Nota do entrevistador: No outro dia, o depoente foi encontrado empalado com uma estaca de duas pontas. 

 

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.01.2023 – 18h01min



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