segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

NOS PORMENORES DE UMA LUPA - Heraldo Lins

 


NOS PORMENORES DE UMA LUPA 


Eu era o policial responsável para apurar o desaparecimento da jumenta de Romígio. O coitado a deixou pastando em frente à sua casa e quando veio desamarrá-la... foi o canto mais limpo. Ele ia fazer uma viagem com seu antigo freguês, agora nem água.  

Chegou à delegacia onde eu estava de plantão. Peguei o caso para sair daquela monotonia onde os maiores acontecimentos não passam de brigas de bêbados. Eu me achava o maior detetive de todos os tempos, e percebi que era um momento de sair do anonimato com tão importantíssimo desafio, pois a jumenta, com apenas duas crias, não deveria ser transformada em carne de charque.

Fomos à casa de Romígio. Fotografei as pegadas e minhas suspeitas "bateram" nuns meninos sorridentes que apareceram “brincando de bola”. Eram vizinhos, e logo achei que seriam eles os grandes vilões do crime da jumenta solta. Eu não, disse um deles apontando que o outro sabia alguma coisa. Foi um caminhão que levou para as bandas dali, mostrando os beiços em direção à cidade.

Deve ser uma quadrilha especializada em roubar jumentas, pensei. Minha ajudante ainda levantou algumas hipóteses que nem anotei para não dar trela. Ela tinha apenas que seguir o que eu determinasse, disse-lhe com um olhar “censurante”.

Tentei saber qual o tipo de relacionamento que o dono mantinha com a sua jumenta, e logo disseram-me que não havia suspeita de maus-tratos ou afeiçoamento carnal, apenas era um meio de ganhar o pão de cada dia. 

A mulher de Romígio apareceu chorando e pedindo-me para que houvesse dedicação de corpo e alma naquela busca, pelo amor de Deus. Nessa hora, fiquei “cheio de pernas” em frente à estagiária. Aquilo era só uma pequena amostra da importância do meu trabalho.

Junto aos vizinhos, descobri rumores que depois dos raptos de jumentas, os bandidos passariam a raptar crianças. Mandei verificar os cartões de crédito da jumenta, mas logo fui avisado que aquele protocolo era utilizado para pessoas e não com um animal. Ah, sim, havia me esquecido. Desculpei-me e fiz questão de virar a cara para não ter que indiciá-los por gaiatice com uma autoridade. 

Procurei saber qual tinha sido a última viagem feita com seu animal de estimação. Não, não era de estimação, corrigiu-me a estagiária. Eu só estava lhe testando, disse-lhe com um sorriso amarelo. 

Pois bem, senhor Romígio, diga tudo sobre o furto. Eu já disse e, por sinal, o senhor anotou tudo. É verdade, anotei, só que não consigo decifrar os garranchos. 

Liguei o áudio no WhatsApp e mandei ele responder algumas perguntas pertinentes: o senhor tem certeza que não era um tamanduá? ou um camelo? ou girafa? Era uma jumenta mesmo? Hipopótamo? Não, não... jumenta! Fiz essas perguntas para ver até que ponto ele gaguejava, pois podia estar de combinado com a quadrilha para receber o prêmio do seguro. Ela não tinha seguro, era só uma jumenta. Tudo bem, mas acho isso muito estranho o senhor possuir um bem e não colocá-lo no seguro, aliás, se o senhor quiser, Romígio, pode pegar o número do telefone de um corretor amigo para que seus filhos possam ser assegurados, afinal, acho que eles valem mais do que uma jumenta. 

Dá para o senhor se concentrar no desaparecimento de Qualhinha. Quem é Qualhinha? A jumenta, era assim que chamávamos. Quem sabe pode ter sido alguém se sentido desprestigiada com o seu próprio nome sendo colocado em um quadrúpede. Aqui neste lugarejo não tem nenhuma mulher com esse nome. Mas pode estar nascendo neste exato momento, e os pais logo deram sumiço ao animal para evitar problemas de “personalidade volúvel”. O que é isso colega? perguntou-me a novata. Arrá! peguei ela em algo que não sabia. É um termo inventado por mim para quem vive duvidando da própria existência. Você se acha uma vaca? Não. Tudo bem, porque se você dissesse que sim... deixe eu ver aqui no meu rascunho de loas... eu diria: sou um touro.

O senhor vai achar os culpados? Perguntou-me a mulher de Romígio. A senhora está muito interessada em saber quem furtou a jumenta. Será que a senhora não está em conluio com o bando? Deus me livre, essa jumenta é sagrada para nós. Foi ela que me levou para ter o primeiro menino; foi ela que deu um coice em Pilário. E Pilário, quem é? Um safado que veio pedir voto aqui em casa. Ah, estou entendendo! Essa jumenta é mais do que uma jumenta. Ela é um ser social e político envolvida na invasão do palácio do planalto, e vocês dizendo que houve rapto. Nós já estamos nos cansando com essa falta de rumo na investigação. É melhor falar com outro policial. Jamais isso deve ocorrer, viu senhora, sob pena de indiciá-los por atrapalhar a investigação, e mais agora que estou chegando aos criminosos, não posso abandoná-la, como vocês fizeram com Qualhinha. Nós não a abandonamos. E por que ela estava fora de casa? e ainda por cima amarrada num cabresto consertado com arame? De onde o senhor tirou esse negócio de cabresto com arame? Dedução de um experiente detetive. Vocês deveriam ter deixado essa jumenta dentro do quarto, mas não, deixaram ao relento e deu no que deu. É o lugar apropriado, autoridade, para se criar um animal assim. Vocês que pensam. Já imaginaram o que dirão os defensores de jumentas? Podem até querer prendê-los por discriminação familiar.

Não precisamos mais procurar Qualhinha. Por quê? perguntei virando-me em direção de onde tinha vindo a informação. Acaba de chegar o caminhão da prefeitura que veio deixá-la. Levaram-na só para cadastrá-la, vaciná-la e não nos avisaram, disse-me a filha de Romígio agarrando-se ao pescoço de Qualhinha no mais dramático berreiro. Graças a mim, o mal-entendido criminoso foi esclarecido. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.01.2023 – 09h17min



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