terça-feira, 17 de janeiro de 2023

DO SERTÃO DE COMBOIEIRO A PIRACA VAI PRO BREJO! - Jair Eloi de Souza



DO SERTÃO DE COMBOIEIRO A PIRACA* VAI PRO BREJO!

Tempos idos no sertão, quando o aroma dos aguapés já se fazia sentir pelos ventos da caatinga que adormecera, os tubérculos aquáticos maturados, em plena primavera e lua setembrinas, chegara a hora das grandes e numerosas pescarias nos sertões do Seridó. O cardume lacustre dos pequenos e médios açudes reproduzira e encorpara a barriga degustando o capim-quicé. Jererés, tarrafas, redes remendados e renovados estavam a postos.
As catimbóias havia dias estavam montadas, trançadas e submersas, e já eram coitos em limbo, onde o cardume após o boquejamento da hora vesperal e boca da noite, encontrava a calmaria e amparo para dormir e suportar a cruviana madrugadenha, que só aliviava quando o eco solitário e compassado do carão ribeirinho anunciava o quebrar da barra.
No rastro dessa fauna, se formara os grandes e renomados pescadores jerereseiros, tarrafeiros e lançadores de redes a nado: dentre muitos, convém nominar Pretim de Antônio Boião, Pedro de Chico Virgínio, Zé Pequeno, Chico Ananias, o gigante Delmirão da Assembléia dos Baú e finalmente Chico de Tia Querida, favo de jocosidade e animador daquela jornada pesqueira..
Em tenra idade, porém, já com sutil observação do cênico, estava esse pretenso escriba a matutar o rancho armado, fogão de trempe à lenha do lado do poente, panelas e jarras de lavra das negras loiceiras da Maria-Tacaca, rachas de lenha seca no pátio da choça e jiraus suspensos para o guardo dos legumes, especiarias, sal, café, rapadura e a mistura óssea, que não raro, era apenas a carcaça da alcatra zebuína..
Havia um cardume uniforme em quase todos os açudes; curimatã, piaus pretos e lavrados, traíra, corró, apanharí e cascudo. Nesses tempos, ainda não havia na malha lacustre o valente e predador Tucunaré da Amazônia. Razão simples, embora já fizesse parte da fauna pesqueira ribeirinha do velho Piranhas, as espias dos açudes obstaculavam sua subida e o acesso a esse coito lacustre, o mesmo acontecendo com a piranha nas suas versões beba e preta, o que fazia reinar a traíra como único predador naquelas barragens.
De bem dizer, nessas pescarias de atacado, não se usava o anzol em caniço, quando muito, atava-se vários anzóis a uma linha grossa de náilon ou de corda de croá, jogava-se n’água, para retirada no outro dia, no sertão chamavam esses de espinhéis.
O peixe graúdo era vendido diariamente na cidade, principalmente a curimatã grande e ovada, essa espécie, quando de pequeno porte, era chamada de pindonga ou piraca, não era apreciada pelas gentes do sertão, em razão de que, uma vez escalada, salgada, enfardada em esteiras de palha de carnaúba, tinha destino certo, o brejo paraibano.
A matutada almocreve da Ribeira do Piranhas, no coice da tropa muar, cruzava o Sabugi, a ribanceira do Seridó, fazia arranchação no sopé da Serra da Rajada, e ganhava o boqueirão de Carnaúba dos Dantas, entrando no Curimataú paraibano, no costado das empenas da Serra do Cuité, onde de pouco chegava à barra de Santa Rosa no azimute de Araras, até atingir o anel do Brejo, onde costumava vender a piraca salpresa, ou fazer o escambo desta por aguardente-de-cabeça, farinha e rapadura.
Tempos distantes, coisas do início do século que se findara, década de vinte, o comércio, se fez presente e em grande escala, é que o brejeiro, tinha carência alimentar, proteína, em função do passadio fraco, embora tivesse naquelas paragens muita fruta.
Dizia o velho Chico Eloi, com sua oralidade retrospectiva, que a viagem tinha algumas vantagens em relação à ida ao Cariri, ao Crato, era mais perto, os riscos menores, ausência de cangaceiros, assaltantes, e até da suçuarana, que atacava menos. Porém, a rapadura do Cariri, sempre foi de melhor sabor, menor acidez.
A viagem às terras cearenses era atrativa, vez em quando, visitavam o Padim Cícero no Juazeiro, renovavam os rosários, traziam as famosas batidas de cana de açúcar. Mas a partir do vale do Rio do Peixe, a viagem tornava-se perigosa, era alí, a terra de Chico Pereira, que estava mais para assaltante do que para cangaceiro.
A propósito, contara-me o velho octogenário que em vinte e quatro, o aguaceiro no sertão tinha caído, mas já ultrapassado o meado de agosto, a lua estava de passagem de quarto crescente para cheia, rumavam para o Crato, comboio de 25 burros, puxado pela burra-guia cigana, estradeira quando para aquelas bandas rumava.
Ao entrar da cidade de Souza, um toque de concertina chamou a atenção de todos. Era o corço do Bando de Lampião, comandado por esperança, apelido de Antônio o irmão mais velho deste facínora, que viera por encomenda dar uma surra em Otávio Mariz, desafeto de Chico Pereira. De ressaltar que nesse dia, a carne seca do Seridó foi solicitada pelo bando, após a identificação dos matutos, e todos sem exceção tiraram sua reserva alimentar para ofertar sem constrangimento, uma vez que a malta nada fez de ofensa aos almocreves da freguesia do Piranhas.
Mas, voltando ao oitão do rancho pesqueiro, fato interessante de registrar, é que desse intercâmbio da almocrevaria pesqueira com o brejo, muitos brejeiros subiram na carona da matutada e nunca mais voltaram para suas terras de origem, porquanto, muitos deles constituíram família e provaram o ocaso e réquiem da caatinga seridoense nos velhos tempos.


6

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”