quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

AMOR ENTRE BRUTOS - Heraldo Lins

 


AMOR ENTRE BRUTOS


Nos arredores do morro morava Ciliano, subdiretor da própria moradia. A casa era própria e tinha na frente uma fachada toda trabalhada por artistas pedreiros. O gosto da fachada vinha da tradição dos construtores inspirados pelas necessidades básicas. As proporções da casa baseavam-se numa caixa de geladeira contendo três delas. Na frente, havia um jardinzinho chamado de mata atlântica que se estendia de norte a sul perdendo-se o controle da riqueza que possuía. Era no jardim que ele passava a maior parte do tempo esperando cair uma manga. 


Ciliano era um homem agudo, estirado pelo ossos das pernas e pescoço estilo seriema, calvo para não dizer pelado, mãos cadavéricas e dedos agulhas. Não largava a rola que criava amarrada por um barbante cagando no seu ombro.  Sempre que podia, trazia para casa os papéis pintados que chamavam de dinheiro. Andava com um guarda-chuva, não porque tivesse medo d’água, mas para proteger a rola.  


Maneiro, com andar “pupulante”, era com grande facilidade que ele vencia o morro quando voltava da cidade. Não usava chapéu nem boné, apenas uma capacete sem a viseira encontrado em uma mão boa de presente. O cavanhaque, quase arrastando no chão, servia para pendurar biscoitos e bolachas furadas para as horas que apertava o estômago. 


Morava por perto uma mulher que pedia dinheiro emprestado a Ciliano, através de sua filha Edipurinha. A mulher, Dona Baseta, vivia querendo fazer o casamento da filha com Ciliano, pelo menos o ajuntamento, porém a filha tinha algumas restrições quanto à rola e ao cavanhaque. Quanto ao capacete, servia para atrapalhar um pouco a feiura, e por isso, estava liberado seu uso.   


Dona Baseta usava um bigode que deixara de depilá-lo desde que o marido abandonou o lar. Preso, por detrás da orelha, aquele bigode só seria tirado quando arranjasse um novo marido que a aceitasse com seus hormônios masculinos acima do normal. De tanto sofrer arrancando-o, resolveu aderir ao seu uso e isso até servia para espantar futuros pretendentes da sua filha, restando a Ciliano a incumbência de tê-la como sogra e, com isso, dispensar a dívida acumulada há tanto tempo. 


Ela, quando queria tomar o dinheiro de Ciliano, enfeitava a filha com uma blusa cheia de tampas de garrafa, colocava um capacete e lambuzava o rosto dela com bolo preto e iam as duas olhar a pomba de Ciliano. Era o pretexto para amolecer o coração daquele homem que adorava rir com o dedo no buraco do dente faltoso de Edipurinha. Ela chupava o dedo e a pomba ficava com ciúmes. Era nessa hora que o  dinheiro passava da mão de Ciliano para a de dona Baseta.  


A única queixa que Edipurinha tinha era a que Ciliano nunca olhava para ela com olhos maliciosos. O máximo que fazia era mostrar os dentes enferrujados, num conceito duvidoso de sorriso depois das brincadeiras com a rola. 


Era uma moça de vinte anos, poucas carnes, bonita na medida do possível, analfabeta de pai e mãe, porém muito agradável de tê-la por perto. Sorria de tudo e de todos, só não de Ciliano. Desse, ela mangava escondida da mãe. Naquele ermo de homens, Ciliano era quem dava para o seu sustento, por isso ia administrando o desejo da mãe em agradá-lo.  


Ciliano tinha assumido, na juventude, quando estudava direito, o cargo de consultor de assuntos difíceis de resolver na bala. Era um tipo conciliador sem dor, daqueles que ficava correndo de um lado para outro atrás de apaziguar as desavenças dos seus colegas de trabalho. Depois da safra de manga, ficou com um comportamento meio estranho indo se enfurnar naquele cafundó do Judas para assumir a extrema responsabilidade de não deixar cortarem um graveto que fosse.  


Ele tinha uma filha casada longe que nem ligava para ele, entretanto aqui e acolá mandava cartões de natal que serviam para acender o fogão de lenha. Papel bom que ele ficava se divertindo olhando papai Noel sendo queimado. O fogo saia avermelhado e ele chamava as duas vizinhas para testemunhar o fato. Era o único momento de lazer antes da safra de caju.  


Passou três ou quatro anos, desde que chegara por ali, até as vizinhas descobrirem que ele poderia ser o provedor mor das suas fomes. Numa noite de escuridão, vieram as duas fazer festa junto com ele. A festa consistia em dar de comer à rola até ela vomitar. Depois disso, ficaram viciadas sem nem mais se lembrarem de pedir dinheiro emprestado. O importante era a farra feita a três numa noite escura. Acredito que se misturavam na escuridão para não verem os rostos bonitos uns dos outros e o clima de euforia continuar. 


O interesse que tinha a mãe no casamento da filha, aumentou quando Edipurinha ficou grávida. Naquelas festas de escuridão, alguém esqueceu de fechar a porta da esperança, e deu no que deu. Ciliano agora vai ser pai novamente. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.01.2023  -  11h16min



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