FINAL DE TARDE NOSTÁLGICA
Apoiando-me nessa mesa embriagada, tento mais um preenchimento de página. As ondas lá e eu aqui olhando-as, enxergando apenas o que quero enxergar. Um carro branco chama-me a atenção. Dentro dele, há quatro terroristas com bombas tentando se explodir. A rua está interditada, de um lado os policiais, do outro, civis curiosos. Um dos terroristas pede para ir ao banheiro e então toda a cena é pausada para que a história possa ser contada nos cinemas.
Deixemos de lado a sétima arte e passemos para uma sucuri tentando satisfazer seu apetite voraz. Já há muita tragédia no mundo e mais essa da cobra com a criança, é melhor reservarmos para o descarte.
Hoje pela manhã fui visitar o velho que está com cara de defunto. Lá vem a realidade. Geme e quase não fala. O que se pode fazer é dar-lhe de comer junto com remédios para expulsar as fezes. A que ponto chegamos, pergunto-me sem poder fazer muita coisa. Não posso falar diretamente com o intestino e dizer-lhe que volte a funcionar. Apenas massagear de fora para dentro tentando acordar os restos mortais dos alimentos, e se persistir, lavagem, foi o que me disseram.
A jovem no supermercado era um tipo “morenaça”. Estava com o short rasgado rasgando minha atenção. Consegui um cabedal de recordações, e, junto com a feira no balaio, trouxe-lhe no pensamento. Nem sabe ela que está sendo lembrada por aqui, mas só eu sei o quanto me causou alegria aquela princesa.
Lá adiante, continua a maré a “marear” com sua espuma branca no entardecer desse domingo que começou com uma caminhada a dois. Dessa vez, alguém se sentiu motivada a participar do meu ritual para receber o sol “madrugadeiro”. No quarto, pessoas se divertem com seus smartphones e televisão, adiante, veículos trafegam, e, nas pontas dos dedos, letras sorriem por estar sendo digitadas.
Ah! sim, ouvi, pela manhã, a carta de uma mulher negra desesperada por viver fugindo dos pistoleiros que caçam as protetoras da floresta. Enquanto a carta estava sendo lida por uma atriz global, assistia eu a uma guerra de bolinhas na televisão para entreter os abastados. Será que nunca iremos nos dar conta que estamos sendo roubados pelos, não digo nem poderosos, mas pelos neonazistas? Como é difícil ser preto nesse país!
Precisamos manter a chama da esperança. Enquanto muitos morrem sem ter onde morar ou comer, comemoramos a copa do mundo. O sol está se pondo enquanto muitos ficam acordados com medo de terem seus filhos assassinados, e eu sendo falso com esse “papo” de esperança.
Posso pesquisar se a maré está baixando ou subindo, mas pouca serventia tem para minha atividade de pescador de ideias. Para a mulata que vem com a bacia cheia de peixes deve ter muita importância saber disso. Ela está se aproximando. Vou lhe perguntar se os peixes são para vender, talvez surja uma conversa que me deixe mais perto das suas ideias e, consequentemente, eu compre os peixes com bacia e tudo. Ela caminha, mesmo com a bacia na cabeça parece que está flutuando. Aproxima-se. Anda! escuto alguém por trás de mim falar com voz de comando. Deve ser o pai ou o marido. É melhor deixar os coitados dos peixes mortos serem levados para saciar a fome de outros seres pensantes.
Lembrei-me da mulher dizendo-me que já conseguiu comprar uma motocicleta e quitar as prestações do celular depois que deixou o marido ruim. Parece que precisamos informar aos outros o que possuímos para nos sentirmos integrados ao meio social. Acho que eu estou fora desse contexto. Só tenho a luz do sol para falar que é minha e, mesmo assim, tenho que compartilhar o vento, a chuva, inclusive com os pernilongos que me tiram o sono. O sapo usufrui tanto quanto eu da beleza da lua. Não tem escapatória: sou obrigado a ser comunista.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 16.10.2022 — 20:19
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