sábado, 23 de abril de 2022

ALGUÉM SAI GANHANDO - Heraldo Lins

 


ALGUÉM SAI GANHANDO


O casal vivia na mais perfeita harmonia. Ela, sem nenhuma variz, tinha toda semana o dinheiro contadinho para ir à manicure. Ele podia tomar uma cerveja no alpendre da casa na noite que ela voltava com as unhas pintadas e o cabelo arrumado. Apenas esse luxo, permitiam-se com o dinheiro curto de herdeiros do sítio. 

Não se sentiam totalmente à vontade porque a mamadeira do filho estava vazando e um dos dois precisava abrir mão da extravagância semanal para a compra de uma nova. Enquanto não chegavam a um acordo, um saco plástico era utilizado, por dentro do recipiente, para evitar o desperdício de leite. Uma gota era importante. O leite, medido e pesado, tinha seu tempo em fogo vigiado para não tomarem prejuízo. 

Moravam perto da guerra, e ele viu na televisão um tanque parcialmente destruído e abandonado. No outro dia, levou o boi da capinadeira e arrastou o tanque para suas terras. No caminho de volta, ainda encontrou mísseis intactos, e como era estudioso autodidata, conseguiu tirou a pólvora para sua espingarda se soca. Mais adiante, encontrou um soldado morto que foi deixado nu e abandonado a céu aberto. 

Em casa, o cantil do soldado serviu de mamadeira para o filho que pulou de alegria dizendo: papai, deixe eu ser o soldado da mamadeira verde. Minha munição vai ser leite da vaca mochila, o que foi repreendido pelo pai: para que esse desperdício? Aquiete-se!  ralhou com o filho enquanto passava verniz nas botas com o intuito de caçar nambus.

Os aviões deixavam cair mantimentos para as tropas, e de vez em quando um paraquedas, com mantimentos, caía pertinho. Sua vida havia melhorado bastante durante esse conflito. Nas caçadas de nambus encontrou um soldado ferido que lhe pediu ajuda. Em seus bolsos havia ouro para poder negociar, caso caísse em mãos inimigas, e alguns mantimentos. Conversaram por quase meia hora planejando a forma mais eficaz de levá-lo para o local de atendimento. Ele ficou pensativo. Havia saído para caçar nambus porque carne não havia em sua geladeira. Foi mais proveitoso matar o soldado, tirar-lhe a carne e ouro de que ir atrás de nambus.

Tornou-se especialista em catar destroços da guerra e revendê-los na cidade. Presenteou sua mulher com um uniforme de uma soldada encontrada cega, e quando perguntado pela dona, disse que ela não havia resistido aos golpes de seu facão. 

Não precisava enterrar suas vítimas. Os urubus faziam a festa juntamente com os lobos atraídos por sangue humano. Para ele, aqueles soldados eram apenas bonecos manipulados pelos dirigentes de seus países. Estavam ali para matar ou morrer, então, tanto fazia para quem não tinha alma, pensava ele. São animais castrados da sua capacidade de raciocínio, seguindo, apenas, o instinto territorial. Não apresentavam diferenças dos urubus e lobos que destrocavam baleados.

Começou a ficar mais atento à movimentação das tropas. Dizia para a mulher: se essa guerra se prolongar, todos os dias você vai poder ir à cabeleireira e eu tomar minha geladinha, sem medo de sermos felizes! 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.04.2022 - 10:19



2 comentários:

  1. Ganharam as personagens de sua história; ganhou você que imaginou o ocorrido e, por fim, ganharam os leitores e a literatura do RN. Parabéns. - Gilberto Cardoso dos Santos

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