terça-feira, 23 de novembro de 2021

A MAGIA NA ALMA - Heraldo Lins



A MAGIA NA ALMA


Tenho em casa uma pintura onde há várias figuras que se completam. Pela mistura de cores e formas, vê-se que se trata de uma obra com o intuito de despertar sentimentos adormecidos. Ao observar o quadro, o admirador é levado a visualizar seus segredos guardados a sete chaves. A reação é chorar ou rir, sem controle. Eu mesmo pintei, medi e escolhi os objetos dispersos no espaço disponível com o intuito de fazer as cores traspassar a barreira moral e atingir, ao mesmo tempo, o âmago da amargura e da felicidade guardados no subconsciente. 

Já apresentei a várias crianças, e, dependendo da idade, uma reação vem à tona. Crianças até quatro anos ficam hipnotizadas sem conseguirem tirar os olhos sozinhas. Depois dos cinco, tentam fugir e se esconderem. As adolescentes seguram nos cabelos e pulam impacientes. Ninguém consegue ficar indiferente à obra. 

Eu deixo pendurado na sala para, quando estou indisposto, observá-lo profundamente e analisar as reações advindas dele. Horas e horas cortejando a pintura já se tornou um cerimonial. 

Uma visitante quis comprá-lo a preço de ouro. Não vendi e nem vendo. A mulher ficou indo me visitar todos os dias. No início vinha sozinha. Depois começou a trazer as amigas, as amigas das amigas e hoje preciso agendar para que possam admirá-lo sossegadas. 

Os depoimentos são diversos. Falam de algo que não se lembravam mais. Dos momentos em que os pais falecidos passeavam com ela, momentos em que estavam em coma, momentos em que saíam do útero materno. Cada dia a mesma pessoa é levada a reviver momentos que aconteceram com ela. Essa capacidade em reviver o passado é o que está fazendo-as voltarem ao meu ateliê.           

Mesmo dormindo as figuras passam desfilando em cortejos intermináveis. A noite toda isso acontece com quem tem acesso ao quadro. As pessoas ficam presas naquele labirinto de cores, e passam a fazer parte do quadro tornando-o vivo e atuante. 

Foi pintado em uma noite de tempestade com a lua encoberta dando sinais de que iria aparecer a qualquer momento. Nessa noite, lembro-me que a vizinha pulou do décimo segundo andar após o marido ter se suicidado. 

No dia seguinte, quando eu dava as últimas pincelas, as torres gêmeas estavam sendo bombardeadas. A cada retoque final, uma explosão. Naquela época nenhuma ligação eu fazia com o quadro. Muitas vezes o joguei no lixo, e muitas vezes ele aparecia na minha sala. Tentei queimá-lo, mas os fósforos não riscaram. O fogão automático que serviu de fonte da chama apagava-se em seguida. Desisti de me livrar dele e o pendurei perto da porta.  

Mês seguinte acertei na loteria e hoje vivo de rendas. Quando estou fora que a diarista tenta limpá-lo meu coração aperta-se. Ligo imediatamente para que ela o deixe em estado de descanso. Minha saúde depende do bem-estar dessa pintura, não só a minha, mas de todos que a observaram por mais de um minuto.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19/11/2021 – 09:03



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