O Natal
Passada a colheita do algodão Mocó (arbóreo) muito utilizado até os anos 70 por se tratar de um produto agrícola com forte teor econômico no nordeste e que foi dizimado pelo bicudo de acordo com a história que alguns contam mas, sobretudo, porque as máquinas de fiação foram modernizadas e já não exigiam um algodão de fibra longa podendo ser feito com qualquer tamanho de fibra. Portanto, o cultivo com o velho e bom mocó perdeu espaços pela sua baixa produção por hectare – chagava-se há, quando muito, no máximo 500 quilos – e o fator aproveitamento de outras fibras e assim o “que dava camisa” foi desaparecendo e deixando o homem do campo mais pobre do que ele já era.
Mas na época em que vamos nos situar, os anos 50, a proximidade das festas de fim de ano que determinava a pós-colheita e o acerto de contas com o patrão, o fornecedor e a bodega, sempre dava para sobrar um dinheirinho para ir as lojas de tecidos de Pedro Nunes ou Miguel Andrade, depois de ter se acabado a loja de Luiz Egídio. Algum tempo depois, entraram no mesmo ramo Pedro Amarante e Antonio Nunes. Era tempo dos alfaiates Luiz, Aluízio “mago” e Lola filho de Luiz Egídio, e das costureiras como Nair Bezerra, Florinda casada com Pedro Lucas,e também minha tia Mocinha. Os sapatos eram feitos na sapataria de Chicó Flor onde trabalhava meu irmão por parte de pai, Déo, e na de Matias.
Na casa paroquial, aquele labirinto bolado por monsenhor Emerson Negreiros – bem como a engenharia Matriz de Santa Rita – construídas com os tijolos e telhas da olaria da paróquia ali no Alegre, hoje já integrando a zona urbana da cidade e servindo de pasto para os animais de Ambrósio – os ensaios do pastoril movimentavam as moças da escola normal em sua grande maioria. Era a escola administrada pela paróquia com sede no Instituto Cônego Monte.
Os cordões azul e encarnado dividiam a cidade desde o mais pobre ao mais abastado. Era o tempo também da política do PSD e UDN, cada qual defendendo a sua cor preferida. Não era aquele pastoril comandado pelo palhaço que bem vim a conhecer algum tempo depois em frente a casa de Câmara Cascudo e que, de cara, não gostei. Só muito tempo depois vim passar a ver com melhores olhos aquele tipo de manifestação popular que tirava do meu lembrar de menino a beleza do canto da Mestre, Contra-mestre e Borboleta e as demais dançarinas deixando tudo ser conduzido peolo palhaço.
“Boa noite meus senhores todos/ Boa noite senhoras também/ Somos pastoras, pastorinhas belas/ Que alegremente vamos a Belém/ Somos pastoras, pastorinhas belas/ Que alegremente vamos a Belém”. Eram pastoras lindíssimas, observadas através da frágil iluminação que chegava a barraca onde os festejos duravam até certa hora da noite com direito a leilão de prendas como galinhas assada. No entanto, a disputa mesmo era ofertar dinheiro para esse ou aquele cordão continuar dançando e que vinha a ser alvo dos comentários no dia seguinte. Quem ofereceu mais, que não deixou tal ou qual cordão dançar.
“Borboleta pequenina, saia fora do rosal/ Venha ver cantar o hino, Viva a noite do Natal./ Eu sou uma borboleta/ Pequenina e feiticeira/ Ando no meio da mata/ Procurado quem me queira”. A pureza dos versos, a beleza do soar das vozes na noite silenciosa lembrava o sermão que se referia ao nascimento de Jesus, únicas palavras proferidas em português durante a Missa do Galo e que os homens não ouviam porque saiam pra fora da igreja.
No finalzinho da tarde, coisa de 5 horas, Antonio da Ladeira, “temperava” a garganta com um gole de cachaça na bodega de Pedro de Tico, ali ao lado do belo mercado, encostada parade-e-meia, a casa de ferragem de Joaquim Tavares e esquentando as paredes da casa Gastão, quando começava aquele aboio lindo avisando que o Boi-de-Reis ia descer as ladeiras do Paraíso, atravessar o rio Trairí e nos maravilhar com o colorido das vestes, o canto dos brincantes, a “safadeza” de Catirina e Mateus e as diabruras do boi. Era festa pra ninguém botar defeito. Ví poucos bois na minha vida que tivesse o brilho e a beleza do de Antonio da Ladeira. Era uma das poucas vezes que minha mãe, quando ainda menino, me deixava ficar na rua vendo a poeira levantar, ouvindo o som da rabeca, o chocalho e a “macaca” compondo o cenário telúrico da morte do boi. Ainda hoje sinto muita saudade de tudo isso.
O Natal tinha coisas lindas. A beleza dos presépios, armados nas salas de cada casa. A fraternidade entre as pessoas – que já era comum na cidadezinha interiorana – ficava mais a flor da pele. Havia algo mais mágico que hoje. Nada disso me chamava a atenção naqueles tempos, só vim perceber depois. O que me fazia delirar era uma cesta feita de papelão e enfeitada com papel crepom que era vendida com castanha de caju dentro. Um gole de xixibirra ou um gelado, com o gelo sendo raspado para ser colocado no copo com um líquido de um vermelho desbotado que nem me lembro que sabor tinha. Era nossa festa.
Mas não podia encerrar esta conversa mole, de cerca lourenço, sem me referir a ansiedade da meninada pelo amanhecer do dia 25. Era a manhã de acordar cedo, ir pra rua mostrar o presente de Papai Noel. Não muito tempo depois dos meus 5 anos de idade, vim descobrir que Papai Noel fora cruel com meus pais, não comigo. Eles faziam um enorme sacrifício para nos dar a alegria de poder ir pra calçada da Rua Ferreira Itajubá mostrar orgulhosamente nossos presentes postos nos sapatos e sandálias debaixo das nossas redes na cama das meninas. Ainda hoje choro ao acordar e não ver na sandália uma lembrancinha do Natal, me faz voltar ao tempo de criança, no sobrado de nossa casa onde hoje mora minha prima Maria Venceslau.
Feliz Natal e que o ano de 2016... Ah, deixa prá lá que não vai mudar mesmo muita coisa. Vamos ficar com a alegria do Natal que nos dá o Salvador e a alegria do nascer de uma vida nova.
Rosemilton teve a doce inspiração de recriar, com sua inteligência, vivência e conhecimento de causa, fatos, pessoas e a sociologia da nossa Santa Cruz do Inharé, de onde fui levado pelos meus pais. Zé Clemente e Neuza, aos quatro anos de idade e por vezes voltavapara rever meus avós tios e tias. Os personagens das suas belíssimas narrações, todos eles “meus conhecidos”, não por ter vivenciado fisicamente, mas pelas conversas, historias e “estorias” “causos” e outras narrativas que ouvi pelinha vida afora, dos meus pais, tios, tias familiares e amigos que povoaram a minha infância, sobretudo nas constantes visitas que meus pais recebiam com muita alegria e fraternidade em nossa casa, na Rua Dr Mario Negócio 2005, bairro das Quintas, onde moreamos até os 16 anos.
ResponderExcluirEssas narrativas e personagens me levam a sentir enorme emoção e saudade! Saudade de um tempo que não vivi, mas que passam em minha memória como se tivesse toda uma vida convivido e usufruído das presenças e da vida de cada um deles. Quase todos já se foram, mas a memória persiste, os becos, as ruas, personagens, fatos e toda a narrativa das crônicas eu as “degustei”, muitas vezes com “ olhos vermelhos e merejantes” revivendo, como num misto de irreal/ flashback, e sentimento de perda, com aquele”vazio” no peito e “nó na guela”, obrigado Rosemilton,pelo grande presente que você nos ofertou, pela imortalização de personagens, pessoas que fizeram e marcaram a nossa cidade, indistintamente de pertencer a classe social, ser abastado ou não, simplesmente, colocou a todos nas mesmas histórias e citações, como viveram e como nos legaram suas vidas das quais pudemos direta ou indiretamente termos o privilégio de conhecer, agora imortalizados em suas deliciosas narrações!
Abraços,
“Didi de Zé Clemente”