A cidade amanheceu menos verde, menos oxigenada, menos ensombrada.
Pássaros retornaram para seus ninhos, mas, à semelhança da ave que Noé
soltou após o dilúvio, estes não mais encontraram os galhos com que estavam
familiarizados. Também não havia arca pra onde retornar... Pequenos insetos,
igualmente, voltaram para o seu mundo, mas ele havia sido destruído. Outros se
foram com ele.
Sim, a cidade amanheceu com menos árvores, menos pássaros, e com a
natureza mais emudecida.
Profissionais, transeuntes, e vendedores ali se ilhavam, protegidos da
inclemência solar e a vida parecia melhor.
Aquela árvore frutificava em sorrisos, amores, olhares brilhantes.
Clientes de banco ou familiares que ficavam à espera, des-fruta-vam de um
tesouro que não cabe nos cofres.
Quantas mãos ali se apertaram, quantos abraços ali foram dados quanto
dinheiro ali se contou! Era um dos poucos lugares onde pobres e ricos se
encontravam, atraídos pelos instintos poderosos de nossas origens silvícolas.
Ali, as motos esfriavam seus motores. Como uma mãe, a árvore as ninava,
botava-as para dormir. “Aquietem-se! O povo está cansado desse barulho!”...
A conversa fluía com mais facilidade, o tempo deslizava mais suavemente.
Era uma sala (ao ar livre) de terapia para os mais idosos, uma ponte
entre nós e a floresta. Uma mão da mãe Gaia que nos acariciava e nos protegia
contra o sol e o tempo inclementes.
Era um oásis de sombra na selva de pedra. Ela nos pertencia, e foi-nos
tirada sem que percebêssemos.
Em A Árvore da Serra, de Augusto dos Anjos, o filho agarrou-se com o
tronco e gritou: "Não corte a árvore, meu pai, para que eu viva!".
Ele teve a chance de clamar em sua defesa, mas nós não tivemos essa
oportunidade. E quando a árvore tombou, certamente também levou consigo um
pouco de nós como ocorreu com o filho no poema.
A cidade amanheceu desarvorada. Desarvorada no sentido mais amplo.
Desarvorado significa ficar transtornado, confuso, desorientado. E foi assim
que se sentiram os que tiveram suas retinas feridas ao chegarem na praça, pois
puderam enxergar melhor os riscos que corremos.
Sentiram-se ofuscados pelo desapontamento.
Ao votar, sempre esperamos benevolência, sombra e água fresca dos que
elegemos. Sonhávamos e ainda sonhamos com uma melhor gestão do meio ambiente.
Mas a cidade, menos ensombrada, tornou-se assombrada com a possibilidade de ser
engolida pela modernidade insana.
Não se sabe que razões levaram a atual gestão a fazer isso. O motosserra
com sua voz irritante tentou explicar-me, disse que são ordens do progresso,
mas não entendi bem o que me disse. Talvez os que a derrubaram também nada
saibam. Apenas se lhes pediu que pusessem o capuz e se fizessem carrascos.
Foram meros instrumentos da lei. Não sabemos como se sentiram ao dormir, com as
mãos cheias de seiva...
Desmatar é matar.
Acho que os gestores públicos, à semelhança dos países democráticos onde
há pena de morte, deveriam ter todo um protocolo ao praticarem tais penas.
Burocracia aqui nunca seria demais. Tudo deveria ser examinado e reexaminado,
prós e contras apresentados. Deveriam deixar bem claro à opinião pública as
razões que os fazem exterminar tais e tais indivíduos e fazer tudo sem muita
pressa para evitar o risco de matar uma inocente. Se tudo fosse antecipadamente
esclarecido, quem sabe, não nos convencêssemos da justeza do que foi feito?
Cem ou mais árvores plantadas em seu lugar jamais substituirão aquela árvore.
Mas ao menos gostaríamos de ter a certeza de que outras serão plantadas como
consolo, assim como os pais que perdem um filho e tentam substituí-lo com
outro...
Dizem que esta árvore era um marco da cidade, mas não era. Era um marco
da natureza e da história, um dos poucos que ainda nos restavam.