sábado, 6 de setembro de 2025

A DOR QUE NÃO VIRA FOTO



A DOR QUE NÃO VIRA FOTO

 

— Acorde para viajar. Lá se foi ela com três volumes nas mãos em direção ao trabalho. Mora em uma cidade e trabalha a mais de cem quilômetros de distância. Pega táxi, ônibus, moto e chega.

— Leve dinheiro, disse o marido enquanto ela se arrumava. Desde os sete anos, precisa correr atrás da sobrevivência. Antes era a mãe no "Está na hora da escola". Ainda bem que amou tanto os pretensos filhos que preferiu seguir à risca a frase de Brás Cubas: "Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria". 

— Será que nunca vou ficar livre dessa trabalheira?, pergunta-se uma outra ao subir o rio para ganhar a vida. Hoje em dia, conquistou um barco a motor para substituir braços e remos. Na adolescência, precisava jogar a corda nas amarras do vapor e subir com um tabuleiro de cocadas. Assédio, furto, piadas maliciosas — tudo suportado com um sorriso por fora e choro por dentro. 

As duas, dentre milhões, seguem a rotina de acordar para trabalhar e trabalhar para dormir com o estômago menos vazio. Se fossem prostitutas, teriam outra carga de responsabilidade: fazer exames, sorrir, beber, fumar, enxugar as lágrimas — em segredo, de preferência no banheiro, sozinhas — e, depois de certo tempo, dizer que a vida tinha sido cruel com elas.

Passaram-se anos e a aposentadoria chegou, trazendo um marido inválido para cuidar, e o outro para ser lembrado no Dia de Finados. Olham para a memória e sentem a mesma sensação de um dever nunca cumprido. Ainda não terminou, observam-se, fazendo projeções econômicas. Contratar uma diarista e tomar sopa no shopping seria um sonho, seguindo recomendações do psiquiatra que ignora a real situação financeira das pacientes. Para qual das duas? Para quase todas pertencentes ao universo feminino. Poderiam incluir uma sessão de cinema, além da diarista e do prato de sopa? Deixe-me ver. Hum, ficaria sem recursos para o deslocamento até o hospital, caso precise. Uma garrafa de vinho? É desejo inalcançável para quem ganha pouco.

Poderiam nunca mais assistir a vídeos mostrando modos de vida acima do padrão, mas precisam estar antenadas, mesmo sabendo da distância medida pela geração de renda.

Ainda bem que o vento e o sol secaram as roupas do varal sem taxa nem boleto. Vai pular o almoço. As frutas precisam ser consumidas; além de economizar gás, economiza também o detergente da lavagem dos pratos e ainda ganha tempo para tricotar o par de meias encomendado, mesmo que amanhã sinta-se esgotada. 

Uma outra, com coroa de brilhante na cabeça, olha para a da lata d’água no mesmo lugar. Os objetos definindo quem chora e quem ri. A mãe da lata diz adeus ao próprio tempo, acorda de madrugada, divide migalhas e deixa o recém-nascido morrer de causa aparentemente natural. Coroa não traz a salvação. Com esse argumento, sentem-se conformadas, sem se dar conta dos conceitos criados com o objetivo de mantê-las no conformismo.

Sempre estiveram presas em pensamentos de sutiã folgado, calcinha apertada, DIU, creme, cabelos, corrimento, carência... Como é difícil administrar um corpo feminino, e mais difícil ainda é antecipar-se aos eventos hormonais. Têm prazo de validade para brincar, namorar, parir e partir. Isso as deixa aflitas.

— Você não é mais mulher! Como se a maternidade separasse a menina da idosa e, nesse meio, o que realmente importasse fosse o interesse redobrado dos agentes fertilizadores.

A mulher que caminha devagar na garagem da clínica olha de lado com a bolsa à tiracolo, vindo do ginecologista. Daqui a pouco vai à academia, cabeleireiro, chá das cinco... Vida perfeita, se não fosse arrastar a mãe idosa com algumas síndromes características de muitos janeiros comemorados. — Será que ninguém está totalmente feliz?, pergunta-se ao pisar na sandália que acaba de se partir. Um pé em cima, outro embaixo. — O que irão pensar de mim?, perguntou-se depois de se ver livre dos calçados. Uma mulher da alta roda, andando descalça. Só espero que meu marido não esteja usando a frigideira de porcelana para fritar ovos. O problema é que não suporto homem na minha cozinha.

— Quem é você?, pergunta sua mãe sem nem saber o que está fazendo dentro daquele carro automático. 

— Sou sua filha, Elisabeth.

— Ah!, é Betinha! Ainda me lembro. Onde está sua irmã?

— Sou sua filha única — respondeu pela centésima vez só nesta semana. A mãe esquece de tudo, porém ainda acredita que o aborto, no início do casamento, não aconteceu. A filha bem-criada desce para a loja de sandálias; estava calçada com as da acompanhante da mãe. 

— Fiquem aí que já volto!

A acompanhante dá um suspiro de alívio. Já não aguenta conviver naquela família onde tudo que se faz há comentários sobre o custo. Deve ser para que não peça aumento. Se deixar esse emprego, vai ter que voltar a catar latinha na rua. Pelo menos aqui não enfrenta o sol nem tem que se prostituir com o dono do armazém — pensa ao limpar a baba descendo no canto da boca da senhorinha.

— Tive que comprar essa para você. A sua, joguei na lixeira da loja. A demora foi porque eu estava justificando que havia pegado emprestado da empregada. Se não comprasse esse par de sandálias extra, iam ficar pensando que era mentira. A acompanhante recebeu o presente com desconfiança 

— Acho que ela vai descontar no meu salário.

No elevador, deram de cara com a senhora do décimo quinto. Cumprimentaram-se.

— Parece que quando estou apressada, o elevador não anda. Pior do que a sandália quebrada foi subir com a gringa reclamando do horário. Aquela vizinha é proprietária de uma agência de viagem. Vive distante da sua terra natal e adotou um companheiro casado, com idade de ser filho dela. O zelador contou que ela sustenta a família do empregado-amante.

— Quem está usando quem? — ficou sem resposta a pergunta do senso comum.

No trajeto, a estrangeira pensa na família que deixou além-fronteira. Depois de conseguir enterrar o pai e a mãe, achou por bem ficar longe dos irmãos. Traficantes de mulheres — podia ser que a raptassem para seus bordéis. Aqui, pelo menos, ela tem um certo domínio da situação.

As clientes entraram na van. Passaram o ano inteiro economizando para conhecer as dunas.

— Que sol maravilhoso! — comentaram ao se sentarem juntas no banco do meio. Durante a viagem, passaram por um homem enchendo, na torneira, garrafões de água mineral; cães deitados, esperando que dois da mesma espécie se separassem da cópula; um sujeito correndo atrás da peruca também foi visto descendo a ladeira da ventania.

Na praia, alugaram outro veículo para o passeio. Fizeram fotos juntas em frente a nomes grandes e coloridos para postarem nas redes. Ainda bem que o odor de urina perto da frase "AMO ESTA PRAIA" não foi registrado pela câmera. 

— Temos que almoçar.

No restaurante, havia uma garçonete que as atendeu no mesmo idioma. Ela havia sido babá no país de origem das clientes e, depois de um certo tempo, recebeu notícias de casa e precisou retornar para tomar conta do restaurante. Sua mãe, ainda de vestido preto, permanecia no comando da cozinha.

Era um pequeno negócio de família, e ela, como a única filha viva, não quis perder a oportunidade de comandá-lo. Sua experiência em terras distantes a fez trazer uma porção de beterraba e cenoura cruas, servindo como cortesia da casa — costume de onde as clientes vinham.

No pequeno palco do restaurante, a cantora homenageia as visitantes com Let It Be. Sua voz macia não a isentou da mancha na blusa decotada. Pausa para trocar de roupa. O filho de três meses ficou em casa. Havia acordado de madrugada para armazenar o excedente do leite materno. Mesmo assim, não tem como evitar que escorra a cada hora que o bebê deve se alimentar.

— Artista também sofre — pensou ao voltar para o palco, tendo consciência da ligação existente entre ela e o filho, expressa pela nódoa na blusa.

 

Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 06.09.2025 - 08h48min.

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