sábado, 21 de dezembro de 2024

Reflexão sobre o filme AINDA ESTOU AQUI - Renan II de Pinheiro e Pereira

 



Sobre Ainda estou aqui e o direito das vítimas exporem seus dramas

*Renan II de Pinheiro e Pereira

 

Lançado aqui no Brasil depois de ser premiado e aplaudido em festivais internacionais, "Ainda estou aqui", filme de Walter Sales Jr. baseado em livro de Marcelo Rubens Paiva, descreve a vida que ele e suas irmãs tinham com o pai, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), numa casa que era um endereço disputado no Leblon, e como esse “mundo perfeito” é destruído quando ele desaparece após ser levado para o DOI-CODI. Em seguida, é a vez de uma de suas irmãs e a mãe dele, Eunice (Fernanda Torres), serem presas, e voltando para casa após quase duas semanas ela inicia uma luta para descobrir onde ele estava e, ao ser informada de sua morte sob tortura, vai para São Paulo, forma-se em Direito e, 25 anos depois, trabalhando como advogada especializada nos direitos dos silvícolas, consegue o reconhecimento oficial de sua morte.

Tendo em vista o atual cenário de polarização no Brasil e no mundo, não foi surpreendente que membros da extrema-direita tenham iniciado uma campanha de boicote ao filme, desqualificando-o como “propaganda comunista apoiada pela Lei Rouanet” e outras desinformações. Porém, a obra tem vencido esse boicote, tendo sido vista por quase 3 milhões de espectadores e arrecadado mais de 41 milhões de reais, sido elogiada pela crítica e inspirado aplausos e comoção por onde passou. Além disso, continua ganhando premiações internacionais e sendo indicado para outras, existe uma expectativa de que tanto o filme quanto Fernanda serão indicados ao Oscar 2025. Mas nesse ponto, abro um parêntese para defender que o filme merece ser assistido independentemente disso, seja pelos seus méritos artísticos quanto pela história que denuncia.

Por isso, é surpreendente para mim que, depois de ter vencido esse boicote e se convertido em sucesso de crítica e público tanto aqui quanto lá fora, a obra agora está atraindo outro tipo de críticas: as da chamada “esquerda identitária”.

Só nessa semana, o filme foi alvo de um vídeo de um "youtuber" radical chamado Thiago Torres, apelidado de "Chavoso da USP" e de uma resenha de Fabiane Albuquerque, "socióloga, feminista e escritora", publicada no site do "Le Monde Diplomatique". Ambas defendendo a mesma tese: a de que o filme "pecaria" por só mostrar o drama de uma família branca, de classe média alta, ignorando as vítimas da ditadura militar de origem mais popular ou de outras etnias (sendo que Chavoso, após ser criticado por seu primeiro vídeo, gravou outro, acusando “parte da esquerda” – leia-se seus acusadores – de ser “playboy, racista e homofóbica”, pelo fato de ser negro, homossexual e de origem periférica).

De imediato, o que chama a atenção nos dois resenhistas é que eles parecem se incomodar com o enfoque na família "privilegiada": na resenha de Fabiane ela chega a procurar evidências de que a empregada doméstica seria explorada pelos Paiva, e Chavoso, além de condenar o aspecto comercial do filme, afirma que “na periferia todos os dias é ditadura”. O que eles parecem desejar é que haja uma maior visibilidade dos dramas de familias humildes, e reconheço que estão certos nesse ponto, pois algumas dessas famílias, como as de Santo Dias e de Manoel Fiel Filho, também assassinados nos “porões”, merecem ter sua história contada. Mas a forma que isso foi reivindicado é incômoda, no limite de desqualificar o sofrimento de Eunice e seus filhos como algo "menor", a crônica de Fabiana passa mesmo a impressão de que ela se regozija com a perda de status financeiro da família, além de omitir o papel de Eunice na luta pelos direitos dos povos originários.

Sim, o filme não esconde que está contando uma história do ponto de vista de uma família “privilegiada”, e parte da trama está alicerçada no papel daquela casa na vida deles, de seus amigos e vizinhos, bem como na mudança de status deles após a perda do patriarca e em como a mãe precisou “ir à luta” para sustentar a família e a si própria. Porém, isso nem torna a história menos interessante nem tira dos Paiva o direito de contá-la, até como uma forma de divulgar a crueldade que fizeram com Rubens. Não há razão para reivindicar o direito das vítimas mais pobres serem conhecidas desqualificando outras, isso resvala em algo lamentável quando se trata de alguém que sofreu tanto, que é a falta de empatia. É lamentável que, em vez de comemorar que um filme brasileiro com tema político conseguiu “furar a bolha” e repercutir de forma tão positiva no país contando uma história que não poucos ainda negam (a título de ilustração, Marcelo relembrou há algum tempo que, quando um busto homenageando seu pai foi inaugurado na Câmara dos Deputados, o então deputado Jair Bolsonaro interrompeu a solenidade com xingamentos e cuspiu na obra), pessoas que se dizem “defensoras dos direitos humanos e dos valores democráticos” hajam de forma mais parecida com outro boicote.

Bem que Tom Jobim dizia que brasileiro tinha inveja do sucesso...

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