Sobre Ainda estou aqui e o direito das vítimas exporem seus dramas
*Renan II de Pinheiro e Pereira
Lançado aqui no Brasil
depois de ser premiado e aplaudido em festivais internacionais, "Ainda
estou aqui", filme de Walter Sales Jr. baseado em livro de Marcelo Rubens
Paiva, descreve a vida que ele e suas irmãs tinham com o pai, o ex-deputado
Rubens Paiva (Selton Mello), numa casa que era um endereço disputado no Leblon,
e como esse “mundo perfeito” é destruído quando ele desaparece após ser levado
para o DOI-CODI. Em seguida, é a vez de uma de suas irmãs e a mãe dele, Eunice
(Fernanda Torres), serem presas, e voltando para casa após quase duas semanas
ela inicia uma luta para descobrir onde ele estava e, ao ser informada de sua
morte sob tortura, vai para São Paulo, forma-se em Direito e, 25 anos depois,
trabalhando como advogada especializada nos direitos dos silvícolas, consegue o
reconhecimento oficial de sua morte.
Tendo em vista o atual
cenário de polarização no Brasil e no mundo, não foi surpreendente que membros
da extrema-direita tenham iniciado uma campanha de boicote ao filme,
desqualificando-o como “propaganda comunista apoiada pela Lei Rouanet” e outras
desinformações. Porém, a obra tem vencido esse boicote, tendo sido vista por
quase 3 milhões de espectadores e arrecadado mais de 41 milhões de reais, sido
elogiada pela crítica e inspirado aplausos e comoção por onde passou. Além
disso, continua ganhando premiações internacionais e sendo indicado para
outras, existe uma expectativa de que tanto o filme quanto Fernanda serão
indicados ao Oscar 2025. Mas nesse ponto, abro um parêntese para defender que o
filme merece ser assistido independentemente disso, seja pelos seus méritos
artísticos quanto pela história que denuncia.
Por isso, é surpreendente
para mim que, depois de ter vencido esse boicote e se convertido em sucesso de
crítica e público tanto aqui quanto lá fora, a obra agora está atraindo outro
tipo de críticas: as da chamada “esquerda identitária”.
Só nessa semana, o filme
foi alvo de um vídeo de um "youtuber" radical chamado Thiago Torres,
apelidado de "Chavoso da USP" e de uma resenha de Fabiane
Albuquerque, "socióloga, feminista e escritora", publicada no site do
"Le Monde Diplomatique". Ambas defendendo a mesma tese: a de que o
filme "pecaria" por só mostrar o drama de uma família branca, de
classe média alta, ignorando as vítimas da ditadura militar de origem mais
popular ou de outras etnias (sendo que Chavoso, após ser criticado por seu
primeiro vídeo, gravou outro, acusando “parte da esquerda” – leia-se seus
acusadores – de ser “playboy, racista e homofóbica”, pelo fato de ser negro,
homossexual e de origem periférica).
De imediato, o que chama
a atenção nos dois resenhistas é que eles parecem se incomodar com o enfoque na
família "privilegiada": na resenha de Fabiane ela chega a procurar
evidências de que a empregada doméstica seria explorada pelos Paiva, e Chavoso,
além de condenar o aspecto comercial do filme, afirma que “na periferia todos
os dias é ditadura”. O que eles parecem desejar é que haja uma maior
visibilidade dos dramas de familias humildes, e reconheço que estão certos
nesse ponto, pois algumas dessas famílias, como as de Santo Dias e de Manoel
Fiel Filho, também assassinados nos “porões”, merecem ter sua história contada.
Mas a forma que isso foi reivindicado é incômoda, no limite de desqualificar o
sofrimento de Eunice e seus filhos como algo "menor", a crônica de
Fabiana passa mesmo a impressão de que ela se regozija com a perda de status
financeiro da família, além de omitir o papel de Eunice na luta pelos direitos
dos povos originários.
Sim, o filme não esconde
que está contando uma história do ponto de vista de uma família “privilegiada”,
e parte da trama está alicerçada no papel daquela casa na vida deles, de seus
amigos e vizinhos, bem como na mudança de status deles após a perda do
patriarca e em como a mãe precisou “ir à luta” para sustentar a família e a si
própria. Porém, isso nem torna a história menos interessante nem tira dos Paiva
o direito de contá-la, até como uma forma de divulgar a crueldade que fizeram
com Rubens. Não há razão para reivindicar o direito das vítimas mais pobres
serem conhecidas desqualificando outras, isso resvala em algo lamentável quando
se trata de alguém que sofreu tanto, que é a falta de empatia. É lamentável
que, em vez de comemorar que um filme brasileiro com tema político conseguiu
“furar a bolha” e repercutir de forma tão positiva no país contando uma
história que não poucos ainda negam (a título de ilustração, Marcelo relembrou
há algum tempo que, quando um busto homenageando seu pai foi inaugurado na
Câmara dos Deputados, o então deputado Jair Bolsonaro interrompeu a solenidade
com xingamentos e cuspiu na obra), pessoas que se dizem “defensoras dos
direitos humanos e dos valores democráticos” hajam de forma mais parecida com
outro boicote.
Bem que Tom Jobim dizia
que brasileiro tinha inveja do sucesso...
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