Camelo – Leão – Criança
Quem de nós consegue romper o invólucro do casulo e viver as três metamorfoses do espírito mencionadas por Nietzsche em Assim falou Zaratustra, nas quais o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão, por fim, criança?
Nesta proposição, a reverência é um peso, um encolhimento do espírito – camelo; o não representa a irreverência, o incivil, a negação das imposições – leão. Consequentemente, os sonhos, as possibilidades, a leveza e a libertação estão na alma da criança.
As transformações do espírito permitem o desatar dos nós, a fluição do ser. Qual o mais liberto dos seres fez suavemente a transição – lagarta/borboleta – sem percorrer caminhos sinuosos, tortuosos e recheados de malabares? Ou conseguiu esvaziar-se por completo do camelo/leão e se embriagar da criança?
Uma busca composta por lembranças/esquecimentos, um lugar prometido com caminhos/descaminhos, desconstrução de alguém que você continua sendo mesmo sem ter escolhido ser, simbolizam o singular/plural que somos.
Quem é que tem pernas tão longas para fazer os percursos mais rápidos e aparentemente mais fáceis? Para nos transportar de um lugar para outro e alcançar um novo cume, faz-se necessário descer um monte e subir outro. Fazer a travessia é transpor o vale.
Há uma linha tênue entre os espaços, uma transitoriedade e caminhos inversos! Os recortes de poder, funções e limites dificultam a percepção do eu e a construção de identidade.
O camelo, mesmo vivendo sua metamorfose, traz consigo as agruras do espírito cativo, do lugar não desfeito, do espaço revisitado. No entanto, a compreensão da relatividade da libertação do espírito não comporta: a criança correndo em círculo; o leão liberto numa ilha; o camelo sem horizonte – liberdade inexata.
A camuflagem do camaleão é a negação de si mesmo, uma performance exibicionista, perda de sua identidade ou estratégia de sobrevivência? O sorvete napolitano, pela sua natureza e também pela sua inconsistência, quando descongelado, perde sua identidade, mesmo permanecendo com o mesmo conteúdo.
O homem sem consciência de suas dimensionalidades se torna uma aldeia privada, um solo infértil, um desertor do seu próprio exército.
Na contramão da matemática – ciência exata – as ciências humanas seguem seu curso contemplando a miserabilidade humana, as almas dilaceradas, as incertezas, os campos minados, as areias movediças, os tsunamis, enfim, um mundo de inconstâncias.
Nos desertos da vida, Caetano Veloso lança a ciência do certo/incerto – “Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco”. Nas ciências humanas, a inconstância é o sal da história!
Sem aplicabilidades, as profecias caem por terra uma a uma. O menos provável acontece. Os dons – presentes divinos – removem montanhas!
Em condições inóspitas, ambiente hostil em todos os aspectos, para romper barreiras e libertar espíritos fomos presenteados com Bob Marley, que gentilmente nos apresentou suas músicas e canções (One Love). Gratificante nos é comprovar que, felizmente, estava errado quem disse que “da Galileia não surge profeta”.
A esperança ressurge a todo momento, contemplemos!
Numa vida de servidão – Camelo – Rosa Parks, ao decidir não ceder o lugar no transporte coletivo para um homem branco, nos Estados Unidos da América, gesto “leonínico”, causa uma revolução e muda o que até então estava posto.
Desse não, muitos ao seu redor voltaram a ser crianças. Sonhos possíveis/impossíveis foram reacendidos, reverberaram. O corajoso não de Rosa Parks, encabeçado por Martin Luther King Jr., deu origem ao movimento pelos direitos civis nos EUA.
Que assim seja o Natal: um sonho de irmandade, fraternidade, justiça e paz!
Maria Goretti Borges
Texto muito profundo e sábio! Feliz Natal, minha querida mana!
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