sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Camelo – Leão – Criança - Goretti Borges



Camelo – Leão – Criança


Quem de nós consegue romper o invólucro do casulo e viver as três metamorfoses do espírito mencionadas por Nietzsche em Assim falou Zaratustra, nas quais o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão, por fim, criança?

Nesta proposição, a reverência é um peso, um encolhimento do espírito – camelo; o não representa a irreverência, o incivil, a negação das imposições – leão. Consequentemente, os sonhos, as possibilidades, a leveza e a libertação estão na alma da criança.

As transformações do espírito permitem o desatar dos nós, a fluição do ser. Qual o mais liberto dos seres fez suavemente a transição – lagarta/borboleta – sem percorrer caminhos sinuosos, tortuosos e recheados de malabares? Ou conseguiu esvaziar-se por completo do camelo/leão e se embriagar da criança?

Uma busca composta por lembranças/esquecimentos, um lugar prometido com caminhos/descaminhos, desconstrução de alguém que você continua sendo mesmo sem ter escolhido ser, simbolizam o singular/plural que somos.

“Hoje ainda sofres dos muitos, tu que és um: hoje ainda tens tua coragem inteira e tuas esperanças”.
“Nas montanhas, o mais curto caminho é aquele entre um cume e outro: mas, para isso, tens de ter pernas compridas”.

Quem é que tem pernas tão longas para fazer os percursos mais rápidos e aparentemente mais fáceis? Para nos transportar de um lugar para outro e alcançar um novo cume, faz-se necessário descer um monte e subir outro. Fazer a travessia é transpor o vale.

Há uma linha tênue entre os espaços, uma transitoriedade e caminhos inversos! Os recortes de poder, funções e limites dificultam a percepção do eu e a construção de identidade.

O camelo, mesmo vivendo sua metamorfose, traz consigo as agruras do espírito cativo, do lugar não desfeito, do espaço revisitado. No entanto, a compreensão da relatividade da libertação do espírito não comporta: a criança correndo em círculo; o leão liberto numa ilha; o camelo sem horizonte – liberdade inexata.

A camuflagem do camaleão é a negação de si mesmo, uma performance exibicionista, perda de sua identidade ou estratégia de sobrevivência? O sorvete napolitano, pela sua natureza e também pela sua inconsistência, quando descongelado, perde sua identidade, mesmo permanecendo com o mesmo conteúdo.

O homem sem consciência de suas dimensionalidades se torna uma aldeia privada, um solo infértil, um desertor do seu próprio exército.

Na contramão da matemática – ciência exata – as ciências humanas seguem seu curso contemplando a miserabilidade humana, as almas dilaceradas, as incertezas, os campos minados, as areias movediças, os tsunamis, enfim, um mundo de inconstâncias.

Nos desertos da vida, Caetano Veloso lança a ciência do certo/incerto – “Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco”. Nas ciências humanas, a inconstância é o sal da história!

Sem aplicabilidades, as profecias caem por terra uma a uma. O menos provável acontece. Os dons – presentes divinos – removem montanhas!

Em condições inóspitas, ambiente hostil em todos os aspectos, para romper barreiras e libertar espíritos fomos presenteados com Bob Marley, que gentilmente nos apresentou suas músicas e canções (One Love). Gratificante nos é comprovar que, felizmente, estava errado quem disse que “da Galileia não surge profeta”.

A esperança ressurge a todo momento, contemplemos!

Numa vida de servidão – Camelo – Rosa Parks, ao decidir não ceder o lugar no transporte coletivo para um homem branco, nos Estados Unidos da América, gesto “leonínico”, causa uma revolução e muda o que até então estava posto.

Desse não, muitos ao seu redor voltaram a ser crianças. Sonhos possíveis/impossíveis foram reacendidos, reverberaram. O corajoso não de Rosa Parks, encabeçado por Martin Luther King Jr., deu origem ao movimento pelos direitos civis nos EUA.

Que assim seja o Natal: um sonho de irmandade, fraternidade, justiça e paz!


Maria Goretti Borges

Um comentário:

  1. Texto muito profundo e sábio! Feliz Natal, minha querida mana!

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