sábado, 14 de dezembro de 2024

POUPANÇA DE AMIZADE - Heraldo Lins

 



POUPANÇA DE AMIZADE 


As tapiocas no tabuleiro, sendo anunciadas que estavam se acabando. No ombro do anunciante, um montão delas dizia o contrário, mas, como sabemos, conversa de vendedor é assim mesmo. Perguntamos o preço. Uma é oito, três por vinte. Rapaz, que tapiocas caras!

O homem, sem perder a empolgação, continuava sua ladainha, agarrando-se numa última chance de vendê-las, enfatizando que eram tapiocas de trezentos gramas e que exigiam gás, fogão e muito trabalho. Sabe quanto gastei de Uber até aqui? Alguém arriscou: quinze pratas... Quarenta, disse ele, mostrando os quatro dedos da mão. Gesticulava, apontando para as tapiocas como se fossem uma obra-prima da culinária. Alguns passantes ouviam seus anúncios, porém seguiam em frente.

Eu acho que estou lhe conhecendo. Você engraxava sapatos na festa do boi, não era? Sim! Ainda tem o paletó? Tenho. À época, ele morava com a própria mãe em Parnamirim e se trajava a rigor para realizar o seu trabalho. Ela vendeu a casa, repartiu o dinheiro com os filhos e agora eu moro em Extremoz. Já comprei minha casa, disse ele intercalando o " Olha a tapioca que está se acabando".

Enquanto continuava trabalhando além das 22h, ele começou a contar mais sobre sua vida, como se o ritual de vender fosse também um pretexto para reviver o passado. As palavras saíam com naturalidade acostumadas a contar de tudo um pouco, tentando manter aberto o canal do bom atendimento. Percebi que os detalhes sobre sua trajetória, fazia parte do pacote que vinha com memórias e sonhos. Os passantes, que antes estavam mais preocupados em chegar em casa, viam-se envolvidos na narrativa que se desenrolava espontaneamente.

Havíamos terminado o jogo de tênis e já quase na saída ele apareceu. Se lhe disser o que eu fazia na festa do boi, você vai se lembrar de mim. Ele me olhou demoradamente e percebi que nenhum traço dos meus cabelos pretos havia restado como referência para ele. Eu apresentava o Show de Mamulengos. Ah, rapaz, lembro demais. Você me colocava no palco e apontava que eu era o melhor engraxate de sapatos da festa. Isso mesmo. Você ainda toma remédio controlado? Eu tomava porque era muito ansioso, disse ele expressando um sorriso de quem não tem malícia.

Quando você trabalhava na calçada da ótica, pegava as pessoas quase à força e as levava para comprar óculos, mesmo sem elas quererem, lembra? Era, mas eu dizia que se quisessem ficar sem ver bem, era problema delas, e ainda saiam zangadas comigo.

Depois que efetuou a venda para nosso grupo de tenistas, ele se foi, desejando-nos uma boa noite, e eu fiquei imaginando o corte de anos que se passaram até aquele momento. Seus cento e trinta e dois quilos foram bem enfatizados, pois, segundo ele, já havia passado dos cento e sessenta. Conheci ele à época do paletó bem assentado. Era um rapaz alinhado e ninguém nunca dizia que sua mente funcionava diferente do padrão da normalidade.

Meu amigo se foi, e à medida que se afastava, a cena do tabuleiro de tapiocas e suas histórias permaneciam no ar. O encontro, que parecia ser só mais uma conversa casual, acabou se tornando uma reflexão sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida. Meu amigo, com sua fala descontraída e cheia de memórias, representava uma geração que, ao longo dos anos, se reinventou e se adaptou à realidade, mantendo vivas as marcas de um passado onde eu estava incluído.

O contraste entre a venda das tapiocas e as lembranças como engraxate e vendedor de óculos trouxe-me uma reflexão sobre as muitas facetas que assumimos no dia a dia. O amigo relembrou uma época que talvez não tenha sido tão gloriosa, mas com certeza o moldou de forma positiva. Assim como as tapiocas não falavam, ele também não precisava mais de grandes frases para expressar a complexidade de sua trajetória. O peso de suas experiências estava nos gestos, no olhar e na maquineta que trazia pendurada no pescoço, além da senha do Pix, na memória.

Ao me despedir dele, fiquei pensando nas muitas pessoas que cruzam nosso caminho, com todas com suas histórias e seus próprios momentos de transição. Cada encontro é um pedaço de uma trama maior, onde as pessoas vêm e vão, deixando um vestígio de algo que nos transforma de como enxergamos o mundo.

Maurílio, com suas tapiocas, suas memórias e seu jeito peculiar de viver, me fez perceber que os momentos de nossa vida são pedaços de tempo esperando para serem relembrados, e que mesmo nas menores ações podemos encontrar a grandeza de nossa jornada.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/13.12.2024 - 03h10min.

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