terça-feira, 15 de novembro de 2022

É PROIBIDO CORRER - Heraldo Lins

 


É PROIBIDO CORRER 


Deitado, comunico-me com as dores nas pernas. As mãos estão bem, obrigado. Um barulho na pia me traz a informação que há alguém preparando comida. Uma roda preta com aro branco está à minha frente. É apenas o carrinho da feira esperando o sábado para ser utilizado, novamente. A sensação de relaxamento, depois de uma boa caminhada, deixa-me à vontade para jogar conversa fora. Segundo especialistas, o homem precisa desses momentos para se ajustar ao meio social. 

Um veículo acelerando chega-me aos ouvidos trazendo-me o som do deslocamento. Deu-me sono. Os olhos semicerrados avistam os dedos se movimentando sem se preocuparem com a importância ou não do que está sendo dito. 

Abro os olhos parecendo uma gaveta sendo puxada. Não me lembro do tempo que fiquei no mundo dos sonhos. Se houve algum deles "cimentando" minha mente, foram embora navegar em outras cabeças. Será que são os mesmos sonhos que tive? Há uma produção em série ou cada um sonha de acordo com suas impressões digitais?  

O corpo permanece inerte esperando outras áreas do cérebro ir acordando... pronto! Levanto-me da cintura para cima. Um desconforto mostra-me que passou da hora do almoço. Viver é isso mesmo: comer, beber, dormir, enquanto o enterro não nos convida para dentro do caixão. Ninguém tem inveja de quem morre, ou tem?

A comida descongelada em cima da pia, mostra-me o que devo fazer pela dor. Sou obrigado a atenuá-la achando bom, o difícil é me colocar no lugar da multidão que está correndo sem recursos para apascentar esse mal-estar. Assisto de camarote o fenômeno da fome brincar com meus sentimentos. Raiva para alguns por não terem como domá-la e risos para quem está diante do prato. 

Lembro-me de Buck lutando durante quatro dias por um monte de carne fresca. No livro “O chamado da floresta”, esse São Bernardo demonstra a selvageria que há por trás de se conseguir comida. Estou “São Bernardo” colocado em frente ao cervo substituído pela vaca cozida. Fico a imaginar que parte dela está espetada no meu garfo. Quais foram os sonhos desse animal que veio parar aqui. A vida pregressa desse pedaço de carne não me diz respeito. É normal matar para não morrer. Todos os dias, faço parte desse ato criminoso de engolir pedaços das vítimas de assassinatos amparados pela lei. 

Não posso comer gatos nem cachorros, quem disse que é nojento? Vaca pode. São lindos os filhotes que vêm lamber minha mão na beira do curral. O leite me faz ser o bezerro que comerá a mãe nos churrascos. Pouco importa para a indústria dos bois gordos. Mas sou o culpado. Se não fosse minha existência faminta, nenhum crime seria cometido nem eu estaria com dúvidas sobre meu papel de predador. É permitido retalhar animais, desde que ele não seja humano. 

Uma animalesca passou correndo na minha frente medindo sua velocidade num relógio de aplicativo. Se fosse uma vaca, estaria condenada à morte.

Dois cães correram de porta afora pedindo-me socorro para se desgrudarem da coleira. A dona se estressou por quase perdê-los de vista. Eram fofinhos, segundo a dondoca. Cada dia hospedados em um hotel para cachorros é uma fortuna gasta com o que ela acha que deve. 

Senti-me agredido ao ouvir alguém dizendo que quem pratica Cooper está agindo de má-fé. Os ciclistas ainda compram bicicletas, os jogadores, bola, os caminhantes, nem remédio para dormir. Abaixo esse parasitas que não estimulam a indústria farmacêutica.

Acho que uma forma de ir contra o capitalismo selvagem é continuar caminhando todos os dias, tive essa certeza depois que assisti ao vídeo.              

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 14.11.2022 – 15:39



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