segunda-feira, 31 de outubro de 2022

PRINCIPADOS E POTESTADES: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ELEIÇÕES NO BRASIL

 


PRINCIPADOS E POTESTADES: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ELEIÇÕES NO BRASIL


Por José de Castro*

Trarei algumas reflexões a partir do embate que vem ocorrendo durante os primeiro e segundo turnos das eleições presidenciais de 2022 em nosso país, com destaque para um viés de caráter místico ou religioso.

Ao longo da campanha, pude observar que muitos ditos “cristãos” se ajoelharam e rezaram fervorosamente, suplicando para que o seu “mito” ganhasse as eleições. Houve quem recomendasse orações e jejuns, como foi o caso da primeira-dama. Acreditavam que eleição dele seria a vontade de Deus. E, caso ele não vencesse, seria a vontade do diabo?… Bem… Prossigamos nas reflexões.

Pude ver cenas de muitos deles chorando e lamentando a derrota nas urnas. Será que Deus foi “tão mau assim” para garantir a eleição do Lula? Como se explica isso? Seria uma forma de castigo para eles? Fazê-los pagar por seus pecados e iniquidades?

Sinceramente, não sei como eles explicam isso à luz de sua fé. Pergunto-me: por que Deus permitiria que as trevas vencessem? Com que propósito? Só para ser do contra? Ou será que eles tiveram fé de menos (fe_de menos… que cacófato cruel!).

Bem, ainda hoje, eu ouvi a explicação de um comentarista de uma emissora de rádio de Natal (capital potiguar que deu maioria de votos a Lula). Para ele, o que está acontecendo é uma guerra espiritual entre a luz e as trevas. Do lado do Bolsonaro posicionam-se os “principados e potestades” que são da luz… Do outro lado existem também “principados e potestades”, só que satânicos. Simples assim. Na avaliação dele, satanás ganhou a batalha… Para mim, essa é uma das formas de distorcer, aviltar e macular o voto dos brasileiros que optaram pelo candidato da coligação progressista liderada pelo PT, principalmente o voto do povo nordestino que assegurou a derrota bolsonarista.

Torna-se oportuno relembrar que Freud, em seu livro “Psicologia das massas e análise do eu”, pode muito bem explicar o que vem acontecendo no mundo e jogar luzes sobre esse comportamento cego e intolerante que eclode em países em que a extrema direita tenta, a todo o custo, se manter no poder. No Brasil não vem sendo diferente, e tal contexto se agravou desde o advento desse governo irresponsável e inconsequente que nos assolou por quatro longos e sofridos anos. Sabe-se que os seus seguidores, inconformados com a derrota, não vão dar tréguas à democracia, tão cedo. Aqui, na verdade, um novo embate começa a ser travado a partir da ascensão de Lula ao Palácio do Planalto.

Pode-se, então, sugerir a todos esses que tentam explicar as disputas eleitorais à luz de uma pretensa guerra espiritual que estudem um pouco mais. E que, alguns deles, em vez de empunharem um fuzil, uma pistola ou lançarem granadas, que abram um livro e busquem um pouco mais de conhecimento. Tal atitude só vai lhes fazer bem, além do que serve para poupar vidas. Poupa vidas e nos livra de ouvir baboseiras em torno do seu “mito” – falso, por sinal – que cultiva ódio e violência preconceituosa contra mulheres, contra indígenas e contra todos aqueles que não rezam pela sua cartilha autocrata, virulenta e neofascista.

Felizmente, há pessoas de bom senso. E elas afirmam, aliviadas: o amor venceu o ódio. Noutras palavras, a civilização venceu a barbárie. Já não era sem tempo.

A partir de janeiro de 2023, espera-se um Brasil com nova roupagem, com uma bandeira que não tenha cor partidária. Que as nossas cores verde e amarela sejam resgatadas e que não signifiquem mais a ignomínia, nem a homofobia, nem a misoginia, nem o atentado contra os povos originários, contra o meio ambiente e nem a violência discricionária contra quem quer que seja.

Que tremule, novamente, a bandeira de todos os brasileiros, independentemente de matiz ideológico. Que represente as cores da pacificação nacional, com respeito à diversidade social, política e cultural, e também à democracia e à Constituição.

De outra forma, que a religião e as igrejas não sejam mais utilizadas como redutos político-partidários. Que não se misture fé, dogmatismo e proselitismo com o estado, que deve permanecer laico. Que as igrejas não sirvam de palanque e nem de espaço para comícios e pregações ideológicas e muito menos para a disseminação do ódio ou para a perseguição dos contrários ao seu modo de pensar e agir.

Além do mais, que possamos desenhar um novo projeto para o Brasil. Que se rompa com o império do medo e da intolerância. Que o amor cristão reine nos corações e nas mentes. Que não se use lemas com o nome de Deus em vão, como se fazia, enquanto se apregoava o armamento do povo brasileiro e se incitava à violência contra adversários, considerados não como divergentes, mas como inimigos a serem eliminados. Em vez de se multiplicar casas de armas e clubes de tiro, que se volte a investir em educação, arte, cultura, livros, livrarias e em bibliotecas.

Que o país possa gerar empregos e assegurar trabalho e remuneração digna para todos. Que haja respeito aos direitos trabalhistas e se assegure aumento real do salário-mínimo e das aposentadorias. Que a mulher seja considerada em sua dignidade, em quaisquer dimensões. Que sejam combatidas todas as formas de discriminação e preconceito em nosso país. Que reine entre nós a paz, a solidariedade e o respeito à nossa diversidade social, cultural e religiosa.

Que as riquezas do país sejam usufruídas por todos, aplicadas em projetos de alcance social, livrando-nos do paradoxo de exportar commodities e de ter milhões de brasileiros em insegurança alimentar. Que o Brasil volte a sair do mapa da fome e que seja respeitado pelas outras nações como um país democrático, altaneiro e soberano.

No limite, o que almejamos é o que o país tenha de volta a sua grandeza e nunca mais seja aviltado por passageiros do ódio e da aventura neofascista. Que renasça entre nós a alegria de viver, sorrir e se abraçar. Que a fé não seja objeto de manipulação, que as igrejas voltem a ser respeitadas, sem misturar religião e política.

Enfim, que o país volte a ter tranquilidade, paz e equilíbrio entre os poderes constituídos e que se inaugurem as condições necessárias para o seu crescimento econômico, político, social e cultural, com valorização, fortalecimento e respeito às instituições democráticas.

Uma reflexão final. O resultado das eleições não foi motivado por um maior ou menor grau de fé, ou por falta de orações e jejuns. A derrota de Bolsonoro deveu-se à opção consciente de uma significativa massa de brasileiros e brasileiras que veem como necessário um governo que olhe para os mais pobres, para os desassistidos. Um governo que tenha como prioridade cuidar de todos aqueles que precisam ser considerados como protagonistas de um no Brasil em que as profundas desigualdades sociais sejam equacionadas com urgência.

Não se trata de uma insana guerra espiritual entre principados e potestades, entre o bem e o mal. Trata-se de ter uma consciência política, com P maiúsculo. E fazer a escolha adequada ao momento histórico do país.

*José de Castro, jornalista, escritor e poeta.
(31.10.2022)


2 comentários:

  1. É sempre motivo de enorme alegria ter algum texto meu, literário ou não, postado nesse conceituado blog. Gratidão sempre, meu amigo... Grande abraço.

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  2. Muito oportuno e instrutivo o seu texto, amigo. Parabéns! - Gilberto Cardoso dos Santos

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