sexta-feira, 28 de outubro de 2022

PERIGO À VISTA - Heraldo Lins



 PERIGO À VISTA

Muitas vezes inventei histórias para entretenimento, e isso eu aprendi quando fui babá de uma criança esperta, por sinal muito esperta a ponto de aos dois anos já saber ler com desenvoltura. Eu digo babá porque todos os pais somos um pouco de tudo. Foi o que aconteceu comigo. 

Aos três anos, ela já tinha lido todas as histórias publicadas e pedia mais. Minha despesa diária com livros passava das dezenas, então comecei a fingir estar lendo-as num caderno em branco, na verdade, inventando-as. Quando ela disse querer ver, eu simplesmente mostrava o caderno e lhe dizia tratar-se de palavras só lidas por pais de anjos. Ela logo deduziu ser um anjo, mas não ficou nisso. 

Começou a perguntar se os pais dos primos também viam tais histórias. Eu dizia que sim, pois éramos uma família de anjinhos e "anjões" prontos para enxergar onde quase ninguém via. E a mamãe? ela não sabe ler essas histórias! Ah! sim, sua mãe não é seu pai. Não era muito convincente o que eu lhe respondia, mas o que importava era mantê-la entretida antes dela "pegar no sono."

Um dia, eu estava com tanto sono que adormeci antes dela, e na manhã seguinte veio me dizer haver aprendido a ler as histórias do caderno em branco, inclusive havia lido-as enquanto eu ressonava, na noite anterior. Não pude contestar uma fantasia que eu mesmo tinha criado, porém ela disse que só conseguia ler bem direitinho se houvesse alguém para escutá-la, dessa forma exigia que eu prestasse atenção senão as letras se apagavam. 

Coincidência ou não, no dia em que eu discutia com minha esposa, o livro apresentava histórias de bruxas e bruxos, e nessas lutas de feitiço contra feitiço, sempre surgia uma supermenina com seus superpoderes para deixar os dois briguentos de castigo. Tivemos que evitar discutirmos na frente dela, mas os passeios continuaram. 

No lago, dizia ela à noite, um monstro surgiu e comeu todas as pessoas que estavam ferindo suas águas com pernas e braços; nos restaurantes, havia um fogão que comia as comidas; as cadeiras reclamavam que não nascia cabelo em seus espaldares porque as costas das pessoas comiam seus bulbos capilares. 

Certa vez, ela foi ao hospital e quando voltou suas histórias estavam cheias de personagens feitos de neve transitando por corredores cheios de tentáculos aprisionando pessoas pelos braços. 

As histórias de fantasmas que fingia ler, eram seguidas de copos caindo de cima do criado-mudo espatifando-se no chão. Ela amarrava linhas nas xícaras e no momento em que o fantasma da história quebrava alguma coisa ela puxava a linha.

Quando um gato preto morreu na história de azar, tivemos o nosso bichano estripado. Com o passar do tempo, tivemos que interná-la e o psiquiatra disse que o problema dela era que acreditava nas próprias mentiras.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 27.10.2022 — 15:56



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