LONGE DA SANIDADE
Soube que os caminhoneiros estão fazendo piquetes para mudar o resultado da eleição. Assim fica difícil aceitar esses ditadores de boleias. Ali naquele pequeno local de comando de pneus, acham que têm o direito de comandar pessoas, assim é demais! Acho que vou dormir um pouco.
Voltando depois de duas horas de sono, acordei um pouco gripado, tossi e a sensação é que estou sozinho. Coisa fácil de dizer é o que acontece com o corpo. Pernas estiradas em cima da poltrona, mãos posicionadas no teclado, esse é o teor mais confortável que consigo no momento. Difícil é dizer o que Sócrates sentiu ao tomar cicuta e ainda mais obrigar esses caminhoneiros a deixarem de ser o que sempre foram: massa de manobra.
Vejo à minha frente o baú branco. Chamei baú porque agora é que me chega o nome geladeira. Estou perdendo a memória, o nome das coisas nem consigo dizer. Um pau com tranças na ponta também custou-me nomeá-lo de vassoura. Caminhão virou argumento político, essa eu consegui com facilidade, acho que é porque isso está me ocupando desde ontem.
São simples nomes que me pegam de surpresa. Preciso recordar que caixão, missa, coveiro, foram nomes que fizeram parte da minha realidade recente quando enterrei meu pai, e esses caminhoneiros querendo enterrar a democracia sem nada disso, é muita pretensão!
Um minuto, dois... Fico sem digitar. O silêncio dura mais de cinco minutos e é o jeito apelar para os golpistas: já não basta os ladrões de cargas agora esses ladrões da liberdade.
Não quero me lembrar da mulher amável ontem no restaurante. Não sei se ela é assim mesmo ou se aquele era um amante assumindo a ausência de quem está defendendo o golpe militar colocando carcaças motorizadas na pista.
Minha mente repousa na varanda da vida. Ao longe escuto o barulho de um avião. Ruim vai ser interditar o espaço. Os aviadores quando aderirem aos caminhoneiros, nem pelo ar poderei sair para buscar alimentos.
Ontem fui multado por esquecer o cartão de estacionamento que me dava poder para ficar perto das entradas. O que era motivo de orgulho tornou-se pesadelo ao ver parte do meu salário lapidado. Acho que aqueles caminhoneiros devem, no mínimo, ser multados por estacionar em local proibido.
Vou embora para o sertão que lá não tem rodovia interditada. Enquanto decido, só me resta dar enter e esperar as forças policiais desmancharem os piquetes para que a paz volte.
Faço parágrafos com uma só frase para ganhar tempo no raciocínio.
Acima eu achei que estava mal, agora é que sei o que é estar sem ideia. Esse estágio são os bastidores do escritor. Ficar remoendo que não consegue fazer o que sempre fez, é uma forma de dizer: “estou acabado”. Já até imagino sendo julgado pelo tribunal criativo forçando-me a entregar as palavras que uso para defender meus pontos de vista. Entregue-as, dirá o juiz. Você está pegando carona nos caminhoneiros, aí nesse momento eu serei absolvido ao dizer que o fundamento da minha sentença está sem sustentabilidade porque ninguém pega carona em caminhão parado.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 01.11.2022 – 14:03
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”