Tempos e Discursos Entrelaçados
Um dia e de repente uma nota lida, uma imagem mostrada, uma observação feita – um vírus, uma ameaça. Ruídos distantes, hipóteses levantadas..., questionamentos diversos. O quê? Longe demais! Onde mesmo, China? Mas que nada, perto muito perto, apenas o tempo de voar algumas milhas, algo comum no vai e vem dos nossos dias, dinâmica contemporânea. Desde então as nossas marés nunca mais foram as mesmas! Uma tela abriu-se, antigas e novas práticas de civilizações passaram a atuar concomitantemente nos palcos e nos bastidores da vida humana.
Temos nos deparado com verdadeiros tsunamis, tanto no ambiente externo como internamente. Uma catarse às avessas! No contexto das incertezas, o significado do termo “viver o tempo presente” passou a ter mais sentido. Nas conversas corriqueiras pelo WhatsApp ao recordarmos o último natal, não é uma referência ao ano próximo passado, assim como o último carnaval. Criou-se um vazio temporal e factual, dando espaço a novos e inusitados fatos, acontecimentos, sustos, uma profusão de falas, dizeres e práticas. Num cenário fértil à construção de narrativas, os discursos vão criando corpos, se intercruzando. Uns articulados, bem fundamentados, outros nem tanto e tantos outros de embrulhar o estômago e a mente.
Quem nos dera a sabedoria do poeta no trato com a dor, que “finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”! A minha condição humana, reles mortal, sente concretamente a dor do malogro na condução de vidas humanas, temos feridas acesas, almas sufocadas, necessitamos de ar, mar, esperança. Uma corrosão, que para além da carne, nebula os sonhos e até a mística das nossas crenças. Oh você, que inventou a tristeza, por que não teve a “fineza de desinventar”? Somada a tantos outros males, a tristeza se apoderou de todos nós, ressalve-se apenas a sua intensidade. Nesse contexto de pandemia, veio-me à memória cenas do filme Coração de Luto. As cenas de dor pela perda da pessoa amada, a partida, a angústia, a insegurança, o desolamento e o luto. Toda essa orfandade, em minha mente de criança, fazia-me chorar compulsivamente.
O retorno ao lado B, ao frágil, aos medos e pesadelos traz um desconforto, um incômodo e ao mesmo tempo uma necessidade de autoconhecimento. Ainda me reportando aos tempos idos, pegava-me perdida em pensamentos e sem entender, questionava: como pode Deus permitir tanto sofrimento, por que não ajuda as crianças? Inclusive a mim, por sentir-me também injustiçada tal qual o menino Vitor do filme! Como, a toda criança, faltava-me o saber necessário para compreender as artimanhas dos homens.
Hoje pego-me questionando fatos do presente. No seu depoimento à CPI da covid-19, o Sr. Carlos Wizard, invocando o nome de Deus, fez o seu discurso de abertura diante de senadores e das câmaras de TV. Fiel da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, de postura conservadora, professor do discurso negacionista, engrossou a fileira da falácia cínica, irresponsável e premeditada que tem levado muitos brasileiros a morte. Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, título bastante sugestivo para quem está perdendo a batalha para a covid-19.
Quando as palavras, os gestos e sentimentos não dão conta de descrever uma imagem, seria a insuficiência da linguagem ou o despropósito da estupidez humana? O gesto de tirar a máscara de uma criança no auge de uma pandemia, diante de seus responsáveis, significa mais que desautorizá-los e infringir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse gestual não é apenas a exposição de uma criança, é a nudez do ser individual e coletivo, de tudo que lhe é sublime, negação de todas as formas de civilidade. Nesse Brasil embrutecido, “ninguém é cidadão” (Gil/Caetano). E os questionamentos continuam, num regime democrático os povos elegem seus representantes. Se o que está posto para nós, são os nossos representantes, quem somos? Seriam eles, nossos representantes, a nossa face oculta? Seríamos, todos juntos, a composição da moeda, quem é a cara, quem é a coroa? Que não nos falte a dignidade de Etty Hillesum e os versos do poeta: “[...] mas vou deixar minha porta aberta / fechar os olhos para me lembrar/ de quando você entrou aqui, falou que o amor só pode ir/ porque pôde ficar.” (Nando Reis).
Maria Goretti Borges
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Cara Goretti, percebe-se, no seu texto, aquela perplexidade comum a todos os que não se deixaram contaminar pelo vírus do fascismo, cuja cepa tem sido propagada por instituições religiosas que, à semelhança do Bom Samaritano, deveriam estar fazendo sua parte nesse momento difícil. Você faz perguntas, algumas retóricas, para as quais não temos resposta plena, indagações perfeitamente cabíveis que precisam ser ecoadas por todos. Como nunca, vemos a realidade do que cantou Padre Zezinho em referência a um eu religioso: "Às vezes quem duvida e faz perguntas é muito mais honesto do que eu." - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirOh amigo, sou muito feliz por contar com sua amizade e carinho! Gilberto: um educador no sentido mais amplo da palavra!
ExcluirUm texto que atende a todos os parâmetros pragmáticos de textualidade: intencionalidade consciente, informatividade coerente, situacionalidade histórica atual, intertextualidade pertinente, aceitabilidade inquestionável.
ResponderExcluirParabéns!
Uma vez gentil, sempre gentil, muito obrigada!
ExcluirPARABÉNS cara amiga por mais um texto tão rico. Vc descreveu com muita sabedoria a nossa travessia em tempos sombrios! São dias terríveis de insegurança e medos. Acredito que nada será como antes se conseguirmos filtrar as lições que essa PANDEMIA nos fez engolir e ferir tanto. "Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa...
ResponderExcluirDa bondade da pessoa ruim...
Sigamos nesses novos tempos em busca de tempos melhores!
Bjs no coração...
Maria Betânia Borges.
Belo texto!
ResponderExcluirMuito obrigada!
ExcluirExcelente reflexão, Goretti Borges.
ResponderExcluirA cada dia mais se supera na arte da produção textual, da textualidade. Uma reflexão do momento atual,com uma argumentação invejável.
Mais una vez, meus parabéns.
João Maria de Medeiros Dantas
Quanta gentileza, muito obrigada!
ExcluirMuito obrigada, amiga! Em busca de tempos melhores sempre!
ResponderExcluirExcelente! Um texto coeso e elegante, que transita entre o artigo e a crônica e fotografa o tempo e os discursos entrelaçados de angústia, de incertezas e, sobretudo, de estupidez humana. Parabéns, professora Goretti. Nota dez!
ResponderExcluirMuito obrigada professor(continua sendo) Nailson! A nota máxima é recíproca pela sua amizade e empatia.
ExcluirQue texto realista e bem escrito. Reflexões que nos acompanham no dia a dia e que transitam em nossas mentes sem nem mesmo percebermos como o fez a professora Goretti. Parabéns pela lucidez do texto!
ResponderExcluirMuito obrigada, Rosemilton! Li agorinha um texto escrito por Gilberto Cardoso em sua homenagem. Dentre tantos os atributos, destaque-se, uma pessoa generosa. Parabéns pelas suas atitudes!
ExcluirO seu texto permite ao leitor uma reflexão da atualidade e nos Leva a pensar sobre quem somos e para onde estamos caminhando. Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada!
ExcluirQuem somos nós? A pergunta crucial nesse tempo. Quem somos nós? O que estamos permitindo fazer? De fato Goretti, me arrepio em pensar que o que está posto seja a nossa face oculta que, dentre outros impropérios, dá o direito de usar a Cristo como um escudo numa guerra que em muito nos distancia dEle. Parabéns mais uma vez... grandes reflexões para nós leitores e para mim e você nós nossos bate-papos costumeiros. Sucesso!
ResponderExcluirUm bate-papo com vc é tudo de bom,sou sua amiga e fã! Sucesso para todos nós, bjo.
ResponderExcluirMuito linda a viagem realizada através das escritas da professora Maria Goretti, sou seu leitor assíduo de suas crônica, e de suas leituras críticas de nossa vaga passagem nesse plano terreno. Que venham mais leituras deleites como as diversas de sua linhagem. Parabéns.
ResponderExcluirMuito obrigada professor e maestro Crisanto Dantas! Que bom que vc gostou, só tenho a agradecer, obrigada mais uma vez e felicidades.
ResponderExcluirMuito obrigada professor e maestro Crisanto Dantas! Que bom que vc gostou, só tenho a agradecer, obrigada mais uma vez, felicidades.
ResponderExcluirMuita intensa essa viagem no tempo presente. Parabéns. Muito sucesso para você.
ResponderExcluirMuito obrigada, sucesso sempre! Um abraço.
ExcluirA realidade dos tempos atuais descrita nesse belíssimo texto. Parabéns. Sucesso.
ResponderExcluirSucesso para todos nós, muito obrigada!
ExcluirPerfeito!
ResponderExcluirUm texto cheio de verdades, retrata fielmente todas as angústia de um tempo sombrio.
Parabéns, Goretti!
Muito obrigada!
ExcluirMuito obrigada, minha amiga Valdicleide! Um abraço.
ResponderExcluirQue texto lindo, contemporâneo e realista. Retoma memórias recentes de um passado/presente cruel. Nos remete a reflexão profunda. Parabéns!!!!
ResponderExcluirMuito obrigada, Francisco! Não tenho palavras para agradecer tamanha gentileza.
ResponderExcluirFico arrepiada com tanta sabedoria nas palavras. Perfeito!
ResponderExcluirUm texto cheio de verdades, em que retrata fielmente todas as nossas angústias, reflexões e questionamentos, que muitas vezes, penso eu, que não teremos respostas. Parabéns professora Gorete!
Muito obrigada Maria Meireles, vc é uma professora sensível e comprometida com o seu fazer pedagógico. Você tem a minha admiração, um abraço!
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