quarta-feira, 1 de junho de 2022

VIAGEM INTERPLANETÁRIA - Heraldo Lins

 


VIAGEM INTERPLANETÁRIA


Quando a conheci parindo na loja, ela era bonita. A essa altura já deixava o peito para Deslaine parar de chorar e, com muita graça, agradecia à parteira que havia lhe ajudado. Já sentada, observava a pequena no centro da reportagem do jornal da noite na edição extraordinária. Emocionada, buscava palavras para responder à repórter sobre o acontecimento mais importante do ano, tendo em vista que a esterilização provocada pela radiação transformava mulheres grávidas em raridades.  

A camada de ozônio estava totalmente destruída, é tanto que para sair à rua durante o dia era necessário roupas especiais. No último minuto da reportagem, chorou como uma criança, e creio que não era pelo sonho realizado, mas pelo incômodo de, a partir de então, ser monitorada pelo governo. Ninguém sabia mais como era um bebê, por isso, o que foi notícia local passou a ser internacional. 

Um dia eu soube mais verdades sobre Deslaine: havia nascida com o talento para tornar manso quem dela se aproximasse. Mais adiante, na idade de mulher, disse-me que ia desistir de viver perto do retrato do marido. Delicadamente, num gesto ensaiado, despediu-se de todos e foi para o campo aberto. Não deu outra: seu corpo esfumaçando, desapareceu no ar. 

Era assim que muitos escolhiam dar cabo à vida, é tanto que havia excursões fugindo para os polos onde permaneciam seis meses em completa escuridão. O que antes era motivo de medo, agora a escuridão tornara-se motivo de atração. A mãe, antes de ela partir, beijou-lhe na testa e ficou admirada pela coragem de ir tão cedo expor-se ao sol. Isso era visto como um ato heroico. 

Ainda se falava em salvação do planeta, coisa pouco acreditada. As festas acabaram deixando saudades nas famílias que, não tendo o que fazer, optavam por juntar pessoas na escuridão e ficar relembrando como era o passado antes da radiação. No escritório, outra mulher dava à luz. Pouco depois do meio-dia, os homens chegaram para fazer cumprir a lei de jogar quem estivesse pronto para pagar a vaga ocupada pelo recém-nascido. A preocupação não era com alimentos, estes produzidos em laboratório, era em manter a superpopulação se suportando. Nos primeiros minutos, um alvoroço se fez ouvir. Se você se dispor a ir, garanto dar proteção à sua família, disse um fortão em relação a um que se escondia. Não concordou, mesmo assim, duas mãos potentes o jogaram para o meio da rua deixando muitos sem disposição para interferir. Ou ele, ou nós, por isso a causa da indiferença. 

Na porta, uma voz sumida resmungava sobre a ação do homem que ejetou seu pai. Com a mesma naturalidade, os homens do governo aproveitaram o grandão para liberar mais um espaço, já que contava com o apoio vingativo dos que ficaram.  

A porta foi fechada e olhos lacrimejantes ficaram olhando a ausência forçada do primeiro familiar. Todos desceram para o bunker onde passavam a maior parte do dia. Na verdade, só havia condições de juntar as cinzas depois do anoitecer, eram hábitos seguidos à risca.

O conselho de sobreviventes vivia medindo o grau de radiação nas estufas. As plantas raquíticas pouco a pouco tomavam corpo, contudo, as pessoas agarradas a falsas esperanças, sofria por não ter liberdade para passear ao ar livre.

A única atividade que não exigia crime ambiental para seu exercício era o teatro praticado com o objetivo de aliviar a tensão. Cães, gatos e outros animais de estimação já haviam morrido, e as pessoas só precisavam ter cuidado para não enlouquecerem.  

Durante essas longas horas, tinham a preocupação de apenas respirar. O próprio alimento vinha na canalização do gás, e só restava alimentarem-se respirando. Não era só a dor de não conseguirem mais dormir, mas não terem condições de fazerem as necessidades fisiológicas. A dúvida era esperar pelo que não vinha, havendo total descrença no restabelecimento da vida,no planeta.  

A frágil estabilidade que os amparava chegou ao fim dois anos depois que Deslaine evaporou-se, e quem seguiu viagem para Marte conseguiu se salvar, os demais foram destruídos.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 31.05.2022 – 23:23



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