O VAQUEIRO NOS SERTÕES DO SERIDÓ
VESTIR GIBÃO NA CAATINGA,
NAS QUEBRADAS* DO SERTÃO,
NÃO DEIXA BOI TER MANDINGA,
É SER VAQUEIRO E PATRÃO.
O piado tristonho do caboré com frio no descampado do tempo, o último canto da acauã no caatingote fechado, o choro madrugadenho da mãe-da-lua solitária, o babélico eco das seriemas no lajedo com a serpente e o rasgo do carão ribeirinho caqueando o aruá, trazem sinais da “barra quebrando” nos Sertões, é o despertar.
Tateando a lamparina a querosene jacaré, risca o fosco o vaqueiro no pavio, o lampejo lhe permite pôr as mãos nos arreios, e abraçar o banzeiro da ordenha, quando arrea o bezerro, para evitar seu sungado.
Assim começa o dia do vaqueiro no sertão do Seridó: O lamaçal do esterco, o cio da vaca a prenhar, tirando o curral do sossego. Bem como o bezerro mamão que não se deixa arrear. Tudo isso é pouca troça, se comparado ao ofício, na caatinga vaquejar.
Pois bem, o vaqueiro sem querer, é o gerente e guia do rebanho. Sua gesta sertaneja começa quando tira o bezerro entalado, em matrizes de bacia estreita, ou quando está de cabeça atravessada. Recolhido o resíduo placentário do rebento pela mãe, a peleja para dar de mamar ao filhote, que o vaqueiro só o faz com leveza, se seu bafo for conhecido da fêmea parida, que já tem a referência, ou quando era arreada na ordenha ou quando racãozeira na puberdade.
Mas o traquejo maior do rebanho está no aboio, no canto afetivo, monótono e triste do vaqueiro. É o aboio reboado e com demora na mata: Eh, boi..., Eh, vaaaca... Eh! Gado oi!... Que a boiada e até o boi mandingueiro, toma a vereda os rumos do curral. Ser vaqueiro não é apenas ser um campeiro, um prestador de serviço, é uma convivência, um lastro de lembrança e emoção no dia a dia, com seus personagens rudes.
Recebe o bafo do bezerro que perdera sua mãe no parto e lhe sunga querendo leite e afeto, da vaca corneta que urrando de ciúme reclama de sua ordenha, pois, precederam o bezerro da vaca sabiá, do rincho fogoso e apelativo do cavalo trancelim, que velho e cego do olho pelo espinho da favela, não lhe puseram mais a sela.
De jandaia que quebrara as forças e morrera atolada na lama do açude no manhoso, de bravura que perdera sua cria e todas as madrugadas urra de banzo e langor. Por último a lembrança do velho companheiro, caatingueiro no faro, o cachorro chororó, que segurava o toureco, enquanto seu dono botava as algemas e máscara, e tocava pra cancela da morada.
Esse personagem, que tem sua faina pastoril nos limites do rebanho, acompanha as fases da lua, ao tempo vesperal quando do nascimento dos rebentos, e sabe se é macho ou fêmea, sem muito mistério. Na rês faltosa e acuada pela bicheira, descobre pela coloração do sangue respigado do abscesso quando na bebida, se esse é curável ou se já está necrosado, pelo rastro deixado na vereda. Assim como em que hora o boi mandingueiro vem à manga ou choradouro matar sua sede. A incursão muda e solitária na mata caatingueira, para descobrir onde a vaca escondera o seu bezerro.
No sertão do Seridó, o vaqueiro sempre teve lugar de destaque. Velhos fazendeiros ou criadores de gado vacum, desde os primórdios da ocupação, estabeleceram uma relação diferente com esses heróis do ciclo do couro. A moradia lhe era franca. Cavalo selado e catingueiro, a vaca guaraína para comer o leite. Estabelecida a confiança, passava o homem encourado a ter direito a sorte, de quatro bezerros nascidos e trazidos para casa, este tinha direito um.
Daí, nos rincões do Seridó, não haver lide, contenda trabalhista, nem vara da espécie instalada naqueles tempos. Costume não observado no verde do canavial. Os homens do eito, naquelas paragens, não tinham moradia, o direito de criar sua cabra, sua vaquinha, até aves domésticas. Moravam nos mocambos periféricos das cidades ou vilas, nunca provaram o jineteado de um poldro ou o trotear de uma alazão, eis a diferença do cinzento sertanejo para o verde da Casa Grande.
Luiz Gonzaga, o nosso Rei do baião, homem de Exu, rincão do sopé da Serra do Araripe, quando gravou a melodia o Boiadeiro, coisas do ano de mil, novecentos e cinqüenta, na sua interpretação, traz na parte declamada, uma cena e ao mesmo tempo, uma alusão a essa relação magnânima entre o vaqueiro e o patrão no sertão, quando se fazendo intérprete do garoto filho do vaqueiro, diz: “Mãeinha... Painho vem chegando, e traz um bezerrinho pra eu, na lua da sela, bem pirrototinho”.
De forma explicativa, o vaqueiro caatingueiro, estimulado por esse acordo, ou convivência socializada com o patrão ou fazendeiro, de ter direito a sorte no nascimento do gado, e este sendo solto na pradaria ou nos brejinhos da caatinga, tomando o café no “quebrar da barra” e após a ordenha do gado de leite, lá estava de cavalo selado e saindo para o mato, para mais um dia de campo, isso se repetia às vezes até aos domingos, se houvesse necessidade e procura por vaca parida amoitada.
Dessa relação de parceria, entre o vaqueiro zeloso do rebanho e o patrão, não era raro se ver, muitos deles como proprietário de pequeno rebanho, criado na própria gleba onde exercia o ofício do gibão, que chamavam e continuam a chamar no sertão até hoje de “semente de gado”. Em conseqüência já era um bom começo, para aquele oficioso da faina espinhenta e do viver encourado.
No Seridó dos sertanistas Juvenal e Osvaldo Lamartine, coisas das Ribeiras do Espinharas e do Piranhas, adjacências da Paraíba, conheci ainda criança, nos idos anos de cinqüenta e sessenta, a gesta de formidável vaquerama, formada no rabicho de negros caatingueiros, do melhor padrão campesino, com destaque para o CRIOULO CHICO LUÍS, homem de confiança do Cel. Marinheiro Saldanha, nas Esperas, onde morava a mãe deste, a velha Aiá Saldanha.
Traquejador exímio de barbatão, aliás, ia pouco ao curral. Os umbrais, as abas das serras e os catingotes fechados, eram o seu penar permanente. Diziam os seus contemporâneos, dentre os quais, o velho Eloi de Souza, tangerino do Cel. Marinheiro, que o Negro Chico Luis, de tanto ser rasgado pela jurema e a amorosa, não tinha mais pele no corpo, tinha crosta.
O outro exemplar de bravura incomparável, na faina potrã era o NEGRO ZÉ PRETINHO, esse mais jovem, habitava a fazenda Caatingueira do também negro Emídio Félix, homem de trato fino, de timbre de voz sedoso, cultor no seu vestuário de roupa branca, feita com linho S 120.
Zé Pretinho, crioulo de silhueta esguia, altura meã, usava chapéu de couro até na feira do domingo, dobrado de forma côncava na frente e a traseira arrebitada para cima, forma que imaginava facilitar romper o cipoal, agachado na crina do cavalo, quando no coice do boi na caatinga. Nas pegas de gado, era um gato ligeiro, escorregava como muçum na descida de um caatingote pra não perder de vista o boi visado.
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