CINDERELA AO CONTRÁRIO
Aos catorze anos fora expulsa de casa. Onde iria morar...? Seu admirador a recebeu, deu-lhe as chaves da casa e três filhos. Separou-se. Trabalhava em tudo que aparecia, até de segurança, dando baixa quando recebeu uma facada nas costas. Só não foi a óbito devido à gordura protegendo o pulmão. Ainda bem que não perfurou aquele que é bombardeado, a cada meia hora, com fumaça.
Nariz afilado, sorriso fácil, sua altura a deixa bem confortável. Não é feia, mas o corpo avantajado atrapalha um pouco. Queria possuir sonhos que tanta gente falava que precisava ter para seguir um rumo certo.
Queimava-se ao sol gritando na porta da loja para que os clientes entrassem. No final de semana, trabalhava preparando sanduiches, embalando-os para os motociclistas entregarem. Ganhava pouco, mas pelo menos conseguia comer à vontade. Quando não estava sacolejando dentro dos coletivos, assistia jogos de vôlei. Pensava que se tivesse oportunidade seria jogadora profissional. Queria pular, cortar a bola, porém, sabotava-se. Roupas apertadas chamavam a atenção para as pernas longas, se não eram torneadas, pelo menos, bem apropriadas para o esporte.
Aniljara, quando distante das filhas de olhos azuis, mostrava-as em fotos guardadas no celular. Ao ficar cuidando de idosos, fumava escondida. Dizia que ia à rua fazer algo e aproveitava para tragar, vício adquirido no Bar do Priquito. Esse bar era a sua diversão. Disse-me que difícil era a noite em que não havia briga de faca. Ela estava sempre por lá. Dizia-se consumidora de homem, seu passatempo preferido. Vinte e oito anos bem ou mal vividos, não se importava com esses conceitos bestas.
Estava se sustentando em pé, e para ela já era o bastante. Nem pensava o que pretendia fazer amanhã. As coisas iam surgindo, e assim tinha sua vida na ponta dos dedos. O que ganhava, gostava de dividir com as vizinhas carentes. Um pouco mais de carência, torna-se-ia miserável.
Tinha disposição para trabalhar, igual a seu pai com três mulheres e uma ruma de filhos. A mãe herdara a profissão de amante vinda da linhagem materna. Tudo seguia normal. O pai, muito bruto, era das forças do governo. General? Comandante mais novo até então formado pela academia. Vinte e três anos já estava no comando naval. Ela se parecia com ele e orgulhava-se do pai mulherengo. Acreditava estar indo à forra ao usar os homens como o pai fizera com as mulheres.
Não sabia dizer um não, e quando as madames a contratavam como cuidadora aceitava o desafio de comer sem parar. Suas empregadoras compravam pães, bolos, doces e satisfaziam-se vendo-a comer até limpar a mesa.
Sua experiência nos livros foi passageira. Lembra-se da história de um homem que comia por vinte. Todas as suas narrativas são bem alimentadas. Disse que adora misturar feijão com rapadura. Sobre suas taxas, acha que estão a mil. Quem se importa com isso..? Nunca vai ao médico, com exceção quando precisou ser costurada. Evita marcar consulta porque ouviu falar que eles arranjam doença para o paciente. Eu disse que era melhor ir, e que só se deve guardar dinheiro, doença não. Respondeu-me sem pestanejar: como não tenho dinheiro, guardo doença mesmo.
No final da entrevista, pedi-lhe para definir sua vida num poema. Ela recitou, de autoria de Bráulio Bessa, o seguinte:
“A vida é uma corrida
Que não se corre sozinho
E vencer não é chegar,
É aproveitar o caminho
Sentindo o cheiro das flores
E aprendendo com as dores
Causadas por cada espinho
Aprenda com cada dor,
Com cada decepção,
Com cada vez que alguém
Lhe partir o coração.
O futuro é obscuro
E às vezes é no escuro
Que se enxerga a direção”.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 06.06.2022 - 11:45
Parabéns, Heraldo. - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirObrigado, Gilberto. Cada dia um desafio em trazer algo novo. A luta continua.
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