CULPABILIDADE PROCURADA
Está difícil aguentar a humanidade. De cada pessoa que se aproxima, coleciona frustrações. O único motivo que lhe faz continuar vivendo é poder se manter afastado dessas pessoas. O céu, neste momento de reflexão pesada, ainda se encontra com nuvens carregadas, resquício da noite anterior de chuvas intensas. Além das pessoas, agora tem raiva da chuva que molhou o seu banheiro, tem raiva do vento que derrubou o copinho de cotonetes, e as toalhas no chão, também, são suas inimigas por terem se deixado cair.
Observa sua mente doentia levando-o a um estreitamento de entendimento. Poderia ter segurado com mais atenção a tigela mergulhada em queda livre, ontem, quando abriu a geladeira. Teve que interromper bruscamente a esposa para não lhe ouvir reclamar. Uma simples tigela quebrada é motivo para analisar, durante horas, todas as possibilidades que poderia ter evitado o desastre oriundo da falta de atenção. Não permite que ele mesmo seja imperfeito, e a tigela veio provar que sim, realmente ele é.
Se as coisas na sua cozinha lhe fogem do controle, imagine se o universo precisasse da sua ação para continuar sendo universo. Se assim fosse, haveria dia em que o sol não nasceria.
Seu esquecimento costumaz não lhe permite ser mais do que já foi na vida, ou seja, nada. Parece até com um deus grego ao contrário, mesmo assim, sua obsessão pelo controle é tão demasiada, que está mapeando quantos gramas de comida precisa ingerir para sentir fome somente às oito da manhã.
Neste momento de mais um amanhecer problemático, volta sua atenção para o colchão que apoia suas costas. Na casa, o silêncio percorrendo os corredores o faz ter a liberdade de sentir-se protegido. Sua falta de disposição para se levantar, causa-lhe inveja da parede que tem força constante para manter o teto sendo teto.
Fica querendo medir quanta força o baobá utiliza para permanecer em pé, com seus galhos e folhas agarrados a ele. A potência que tem uma irritação na pele para fazer o braço, intuitivamente, coçar aquele lugar. Há muitas variantes fugindo do seu controle, e isso o deixa com a sensação de impotência.
Levanta-se da cama. A temperatura corporal muda depois que retira o lençol. Nem pensou nisso quando resolveu sair, e só isso já o paralisa. Errou mais uma vez por não ter calculado as reações advindas dessa simples/complicada ação. Fica sentado tentando encontrar as respostas para o que irá sentir ao se levantar totalmente.
Ao longe uma chuva une o céu ao mar, isso ele já desistiu de controlar. Pensa por alguns minutos. Na verdade ele está mais preocupado em registrar o que sente de que realmente sentir. Acredita que é a influência das redes sociais chegando, de forma tardia, ao seu egocentrismo irritante. Não gosta de fotos, e por isso troca por narrativas.
Toma a decisão que chegou a hora de se levantar, e assim o faz. As costas! Jamais pensaria que suas costas doeriam tanto quanto doeu. A coluna sente o impacto de aguentar quase oitenta quilos. Percebe que não consegue ter a linha de pensamento puramente racional. O corpo interferindo constantemente no pensamento o desvia da pureza racional.
Agora é que percebe o porquê de a tigela ter se desprendido das suas mãos: estava, naquele momento, tentando decifrar um enigma racional, e tirar uma tigela da geladeira, a pedido da sua esposa, desviou o ciclo natural do pensamento, fazendo suas mãos ficarem indiferentes ao comando externo, causa maior da frouxidão dos músculos digitais.
Depois de encontrar argumentos para sair da condição de réu, volta à cama para recuperar o sono perdido na investigação.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 1º.02.2022 ─ 10:25
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