segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Uma Coisa de Cinema (Gilberto Cardoso dos Santos)

Uma Coisa de Cinema (Gilberto Cardoso dos Santos)

Ao ver o tema da redação do ENEM de 2019 – “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”, tive a curiosidade de ler os textos motivadores e logo me lembrei do antigo cinema de minha cidade (Cuité-PB), onde muitos choraram vendo Coração de luto e se contorceram nas cadeiras diante de King Kong. Fiquei imaginando o que eu escreveria naquela redação e o que realmente seria tentado a escrever caso a tivesse feito.

O tema me chamou a atenção para a abundância de filmes de que dispomos hoje na tela do celular, da tevê e do computador. Pensei nas antigas salas de cinema, hoje convertidas em igrejas ou em centros igualmente comerciais. Achava-se que o cinema estava morto, mas ele ressurgiu nos Shoppings.

Lembrei-me das vezes que entramos na fila para ver ou rever uma película. A hipnose cinematográfica começava na música de abertura, na chamada para a exibição. Recordei-me dos filmes de karatê, dos faroestes, das películas românticas... sempre me virava para ver a fonte de onde procediam aquelas maravilhas. Lembro-me do espanto que tive quando peguei um pedaço de fita de filme e vi apenas uma sequência de fotos que pareciam se repetir a cada quadro. Foi um misto de decepção e de espanto.

Mágicos eram os momentos que ali vivíamos. Enriqueciam nossa imaginação na rotina dos dias e afetavam nosso comportamento. De uma exibição à outra, sempre havia a expectativa de grandes emoções e isso alegrava a cidade. 

Eu era fã de Bruce Lee. Em casa, dava golpes nas paredes, em telhas e tijolos. Lembro-me de dar golpes de karatê em pontas de pregos fincados numa tábua. Seguindo a receita, passava sal na parte ferida. Diziam que isso fortaleceria a mão e aprimoraria o golpe. Com muito orgulho, certa vez, ouvi alguém de minha idade dizer: “Gilberto, você tá parecendo Bruce Lee. Anda do mesmo jeito.”

E o que dizer dos duelos ou tiroteios em que eu me sentia um Sartana? Como era bom pegar um pedaço de pau com aparência de arma e alvejar os inimigos escondidos por trás de moitas próximas às nossas casas... Às vezes tínhamos certeza de que o tiro atingira o peito do adversário, mas este relutava em admitir. Ficava difícil para nós comprovarmos, pois as balas eram invisíveis. Quanta adrenalina nesses momentos em que saltávamos duma moita a outra.

Hoje vou ao cinema do Shopping com a família, mas já não tem o mesmo encanto. Ali, na poltrona confortável, recordo-me do cinema de Seu Jovino, do barulho da máquina, das vezes em que a fita quebrava e das consequentes vaias até que houvesse o conserto; do facho acinzentado de luz, oriunda do lugar alto e escuro; dos pedidos de silêncio e da censura aos que queriam se levantar durante a exibição ou erguiam a mão para projetar a sombra na tela.
Seu Jovino, o maçom da cidade, o católico praticante, o cidadão de bem, tinha uma aparência e comportamento que impunham respeito. Mas que seu eu objetivamente a respeito de Seu Jovino? Quase nada. Sei apenas o que minha imaginação pintou a seu respeito, como fazia com os heróis da telona.

No cinema de hoje, tudo é muito perfeitinho e já não nos espantamos com o que a Computação Gráfica pode fazer. King Kong hoje, por mais convincente que seja numa exibição 3D, não se compara com aquele, tosco e de movimentos robotizados do cinema de meu tempo.

É muito bom estar ali, no Shopping, mas por causa da família e das boas recordações que o momento me traz. Enquanto assisto ao filme, maquiavelicamente produzido para agradar a toda a família, vejo outras películas. Afinal, não há espaço cinematográfico melhor que o da nossa imaginação. Nossa mente é uma coisa de cinema.

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No vídeo abaixo, uma entrevista feita com meu irmão Antônio Cardoso – o Nego Tota – a respeito do antigo cinema de Cuité.



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