INCLASSIFICÁVEIS
Que português, que
galego, o que? Que
lindos os sotaques,
que riqueza a da nossa
língua pelo mundo
O galego não é português. Isso
constatamos Concha Rousia e mais eu quando ao chegarmos a Brasília para
participar na Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no
Sistema Mundial, organizada o passado mês de abril pela Comunidade de Países de
Língua Portuguesa, vimos que teríamos de nos comunicar com pessoas de quatro
continentes. E também foi assim no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e
depois na Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, e finalmente em
Santa Catarina, estado do sul do Brasil onde passamos vários dias participando
nos Colóquios da Lusofonia e na apresentação do Instituto Cultural Brasil-Galiza
junto do académico Joám Evans Pim. Como Alice no buraco do coelho, as duas
enfiamos por aquele universo multicultural onde a toda hora a mesma palavra era
pronunciada de muitas maneiras. De repente e sem ajuda de nenhum decreto
trilinguista estávamos participando em conversas com mais de oito línguas
diferentes tais como o angolano, o timorense, o moçambicano, o riojaneirense, o
paulistano, o catarinense, o português, mas sobretudo o galego, a nossa língua
de sempre. A cousa semelhava um enorme Babel, ainda que bastante imperfeito
porque a intercompreensão era ótima. E não somente isso, senão que o galego,
essa «língua-de-seu-diferente-do-português», soava alto e claro nos salões do
palácio Itamaraty, no auditório da sede da Academia Brasileira, no Teatro Pedro
Ivo de Florianópolis ou na sala de entrada do Instituto Federal de Santa
Catarina. E era mais forte a nossa voz quanto mais ouvida era, e virava mais
galega quanto mais compreendida por pessoas não galegas. Sermos entendidas na
comunicação oral foi uma satisfação imensa. Também o foi comprovar que os
assuntos da Galiza são de interesse no Brasil. Donde é que nós vínhamos? A
nossa língua portuguesa era bem curiosa, comentavam. Parecia-lhes um português
inclassificável, que não pertencia a nenhum dos países lusófonos conhecidos.
Acho que foi uma grande surpresa para os africanos. Eles, para além de manterem
as suas línguas africanas, adotaram a portuguesa como língua franca dentro dos
seus países e para as necessárias relações internacionais. Muitos por primeira
vez ouviam e entendiam àquelas mulheres vindas de não se sabe que parte da
Europa, mas não de Portugal, a defender com aquele sotaque a língua da sua
terra que elas chamavam indiferentemente de galego ou língua portuguesa. Porém
para os brasileiros era uma rotina. Reconhecer a sua língua sob a maquiagem dos
diferentes sotaques é costume nacional, entra dentro das suas tradições, sejam
os falantes da Galiza ou da China. Num país que é quase meio continente, onde
moram mais libaneses que no Líbano, a comunicação com índios, mestiços,
mulatos, cafuzos, italogermanos, pardos, tapuias, tupinamboclos, americataís,
portugalegos e yorubárbaros está na ementa diária e todos conseguem entender-se
em língua portuguesa. Conhecendo o Brasil fica muito pobre o mito de uma
língua, um país. Agora sabemos que galegos e guaranis, índios da Europa e da
América, podemos comunicar-nos em língua portuguesa. Aqueles que ainda não
aprenderam têm só de apressar um pouco o passo, que o mundo lá fora aguarda
ver-nos chegar alegres e lançais, gaiteiros e violonistas, confiantes e certos,
na frente uma estrela e no bico um cantar. Somos o que somos, diz Arnaldo
Antunes: inclassificáveis. Que brasileiro, que português, que galego, o que?
Que lindos os sotaques, que riqueza exuberante a da nossa língua pelo mundo
adiante em bocas de todas as cores e tamanhos. Que traço de união fascinante
entre culturas diversas espalhadas por meio planeta. A independência, a maior
liberdade, a consciência de não haver barreiras, está dentro de nós. Somos nós
a crescer quando nos misturamos com quem a nossa voz entende. E nesse
conhecimento e reconhecimento mútuo medramos, como Alice, sem deixar de ser os
de sempre, as de sempre.
Às moças e moços do Félix Muriel de Rianjo.
Isabel Rei é integrante da
Academia Galega da Língua Portuguesa
Intervenção de Concha Rousia, sala San Tiago Dantas
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