sexta-feira, 14 de junho de 2019

INCLASSIFICÁVEIS - Isabel Rei Samartim


INCLASSIFICÁVEIS

Que português, que galego, o que? Que lindos os sotaques, que riqueza a da nossa língua pelo mundo


O galego não é português. Isso constatamos Concha Rousia e mais eu quando ao chegarmos a Brasília para participar na Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, organizada o passado mês de abril pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa, vimos que teríamos de nos comunicar com pessoas de quatro continentes. E também foi assim no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e depois na Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, e finalmente em Santa Catarina, estado do sul do Brasil onde passamos vários dias participando nos Colóquios da Lusofonia e na apresentação do Instituto Cultural Brasil-Galiza junto do académico Joám Evans Pim. Como Alice no buraco do coelho, as duas enfiamos por aquele universo multicultural onde a toda hora a mesma palavra era pronunciada de muitas maneiras. De repente e sem ajuda de nenhum decreto trilinguista estávamos participando em conversas com mais de oito línguas diferentes tais como o angolano, o timorense, o moçambicano, o riojaneirense, o paulistano, o catarinense, o português, mas sobretudo o galego, a nossa língua de sempre. A cousa semelhava um enorme Babel, ainda que bastante imperfeito porque a intercompreensão era ótima. E não somente isso, senão que o galego, essa «língua-de-seu-diferente-do-português», soava alto e claro nos salões do palácio Itamaraty, no auditório da sede da Academia Brasileira, no Teatro Pedro Ivo de Florianópolis ou na sala de entrada do Instituto Federal de Santa Catarina. E era mais forte a nossa voz quanto mais ouvida era, e virava mais galega quanto mais compreendida por pessoas não galegas. Sermos entendidas na comunicação oral foi uma satisfação imensa. Também o foi comprovar que os assuntos da Galiza são de interesse no Brasil. Donde é que nós vínhamos? A nossa língua portuguesa era bem curiosa, comentavam. Parecia-lhes um português inclassificável, que não pertencia a nenhum dos países lusófonos conhecidos. Acho que foi uma grande surpresa para os africanos. Eles, para além de manterem as suas línguas africanas, adotaram a portuguesa como língua franca dentro dos seus países e para as necessárias relações internacionais. Muitos por primeira vez ouviam e entendiam àquelas mulheres vindas de não se sabe que parte da Europa, mas não de Portugal, a defender com aquele sotaque a língua da sua terra que elas chamavam indiferentemente de galego ou língua portuguesa. Porém para os brasileiros era uma rotina. Reconhecer a sua língua sob a maquiagem dos diferentes sotaques é costume nacional, entra dentro das suas tradições, sejam os falantes da Galiza ou da China. Num país que é quase meio continente, onde moram mais libaneses que no Líbano, a comunicação com índios, mestiços, mulatos, cafuzos, italogermanos, pardos, tapuias, tupinamboclos, americataís, portugalegos e yorubárbaros está na ementa diária e todos conseguem entender-se em língua portuguesa. Conhecendo o Brasil fica muito pobre o mito de uma língua, um país. Agora sabemos que galegos e guaranis, índios da Europa e da América, podemos comunicar-nos em língua portuguesa. Aqueles que ainda não aprenderam têm só de apressar um pouco o passo, que o mundo lá fora aguarda ver-nos chegar alegres e lançais, gaiteiros e violonistas, confiantes e certos, na frente uma estrela e no bico um cantar. Somos o que somos, diz Arnaldo Antunes: inclassificáveis. Que brasileiro, que português, que galego, o que? Que lindos os sotaques, que riqueza exuberante a da nossa língua pelo mundo adiante em bocas de todas as cores e tamanhos. Que traço de união fascinante entre culturas diversas espalhadas por meio planeta. A independência, a maior liberdade, a consciência de não haver barreiras, está dentro de nós. Somos nós a crescer quando nos misturamos com quem a nossa voz entende. E nesse conhecimento e reconhecimento mútuo medramos, como Alice, sem deixar de ser os de sempre, as de sempre. 

Às moças e moços do Félix Muriel de Rianjo.



Isabel Rei é integrante da Academia Galega da Língua Portuguesa 
Mulher, música guitarrista, galega, escritora. Pensa que a amizade é uma das cousas mais importantes da vida. Aprendeu a sobreviver sem o imprescindível.






Intervenção de Concha Rousia, sala San Tiago Dantas



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”