quinta-feira, 15 de março de 2018

CASO WALESKA E SUA FILHA NA UFRN - CARTAS ABERTAS de Alipio DeSousa Filho e Pedro Germano Leal

Alipio DeSousa Filho, Cientista Social, professor da UFRN
CARTA ABERTA DO PROFESSOR ALÍPIO
Desde seu surgimento – nos séculos XII e XIII –, as universidades têm sido atacadas de muitas maneiras. No dizer de Kenneth Minogue, uma verdadeira “tradição de ataque à universidade” constituiu-se, variando as épocas e os interesses. Com o autor, podemos dizer que a história da universidade é a de uma instituição incompreendida, em torno da qual sempre esteve a ideia da necessidade de que ela se adapte a essa ou aquela vontade. Não é à toa que o assunto “reforma da universidade” praticamente nunca saiu de pauta. Somente poderemos sair dessa “tradição de ataque à universidade”, incompreendida em sua natureza específica, se conseguirmos sustentar um ideal de universidade e assumirmos sua defesa. Na relação com a sociedade, nós que constituímos a Universidade devemos nos dar essa tarefa, sem nos permitir ser reféns de qualquer que seja a chantagem política ou ideológica, venha de onde vier.
Mentira contada como verdade
Ontem, uma mentira contada como verdade nos esgotos sociais na cidade de Natal – que alguns chamam de “redes sociais”, e definido pelo pensador Umberco Eco como o palanque dos imbecis; e eu acrescento: o dispositivo dos covardes morais e políticos, muitas vezes escondidos no anominato da escrita de textos sem assinatura – induziu até mesmo meios de comunicação ao erro de divulgarem a notícia da “expulsão de aluna da UFRN de sala de aula”. Não houve nenhuma expulsão e, mesmo depois de entrevistas comigo, alguns órgãos da imprensa (chamada de golpista por todos aqueles que ontem se pronunciavam nos esgotos sociais) cometeram o erro de veicular notícia falsa. O horário de aula pela qual sou responsável vai de 19h às 21h30. Horário no qual a aluna insiste, desde o primeiro dia, levar sua filha criança (de idade em torno de cinco anos), e, apenas após o encerramento da aula, abordei o assunto, orientando a aluna a não mais trazer a filha à sala de aula. Não há como se falar de “expulsão”, tratando-se de assunto que não foi abordado no início da sessão, mas no seu final, e tendo a aluna e mais apenas três colegas saído da sala, em seguida não terem tido a palavra franqueada por mim, pois não torno minha sala de aula lugar do assembleísmo populista no qual estudantes pretendem decidir sobre todas as coisas em formato de votação, plebiscito, até mesmo conteúdo de disciplina, e, pasmem, até mesmo o que pode um professor dizer em sala de aula. A saída de alguém de um recinto por desejo próprio, por insatisfação, não constitui expulsão! Temos aí uma mentira contada como verdade.
E mais: não se torna admissível que uma criança permaneça em sala de aula, durante todo um semestre letivo, como é o pleito atual da estudante, em horário noturno, para ouvir aulas de sociologia para adultos. Uma disciplina, como todos as demais em ciências sociais, em que são abordados assuntos que em nenhuma sociedade no mundo são apresentados para crianças. Tal é que, exceto às sociedades tradicionais ou indígenas, a educação escolar nas demais é dividida em séries, etapas e instituições específicas, correspondentes ao grau de maturidade de crianças, jovens e adultos no processo de aprendizagem. Aqueles que estão defendendo a presença de crianças em sala de aula mostram-se estúpidos, ridículos, canalhas populistas, querendo “causar” e aparecer à falta de poder ser reconhecidos como verdadeiros pesquisadores e intelectuais públicos. Vamos ver como serão as aulas deles com dez ou vinte ou cinquenta crianças em sala de aula e vamos ver se os demais estudantes, que não estarão de acordo com isso, admitirão o fato. Ora, será assunto para Ministério Público, Vara da Infância e Juventude e Judiciário! Mas somente nas Humanas da UFRN tal ideia aparece. Muito certamente professores dos centros que trabalham com equipamentos, máquinas, experimentos, líquidos, gases ou animais não deixarão crianças agirem ao bel prazer delas e de suas mães! Tô pagando para ver!
A universidade em ritmo de barbárie
O título acima é do filósofo Arthur Giannotti. No seu livro, de algumas décadas atrás, ele já anuncia o risco da destruição da Universidade. Pois bem, falarei aqui da destruição que já vem sendo perpetrada pela prática de certos professores e certos estudantes, muitas vezes com a omissão dos poderes constituídos das Universidades e mesmo do Estado brasileiro. Vou aqui me deter apenas nos exemplos do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, no qual sou professor desde 1992.  Ali, naquele centro, um pequeno grupo de estudantes, que autoritariamente pretende impor-se aos demais, decidiu que todo exercício da autoridade moral do professor ou da instituição é autoritarismo e conservadorismo. Problemas diversos são colecionados por essa atitude de desprezo pelo princípio basilar de qualquer educação, na qual, em relações assimétricas, professores orientam, ensinam, coordenam, dirigem, pela razão simples que estudantes chegam às Universidades para se formarem em profissões científicas diversas, pelo pressuposto óbvio que, tendo ainda que aprender como agir como profissionais das muitas áreas, a Universidade dispõe de professores para lhes formar.
Nos dias que correm, no CCHLA da UFRN, tem ocorrido que certos alunos, sempre militantes de partidos ou de movimentos sociais, assumiram de questionar não apenas regras da instituição como um todo, mas negarem qualquer assimetria na relação professor/estudante, adotando posturas que vão de interromper exposições de contéudos pelo professor nos primeiros minutos de apresentação de qualquer tema, pela concepção que eles têm o direito de falar a qualquer minuto, sem a paciência de aguardar o razoável de uma exposição preparada com o objetivo do desenvolvimento de disciplinas previstas para esse fim. Não passar a palavra a alguns deles, em seguida que levam o braço, não raro é interpretado como cerceamento da palavra. Ora, há 30 anos sou professor da Universidade Federal brasileira. Minhas aulas as faço utilizando-me do método da exposição dialogada, pelo qual todos os presentes, mesmo ouvintes (o que é comum em minhas turmas cheias; não raro, turmas que contam com pessoas que ali estão apenas para aprender comigo, mesmo não sendo estudantes regulares). Todo o meu horário de aula emprego na exposição de temas previstos e todos têm a palavra facultada, mas numa ordem de inscrição e de razoabilidade de tempo da exposição, que, de outro modo, curso nenhum na universidade tornar-se-ia possível. Todavia, certos militantes tomam isso como uma afronta ao seu direito de não poderem falar imediatamente ao desejo expresso de fazê-lo e pelo tempo que quiserem! Mas isso não é tudo: anos atrás, um estudante das ciências sociais decidiu levar sua cadela para a sala de aula, pretendendo assistir à aula com a cadela no colo. Ao tentar tal em minha sala, foi orientado a sair. No setor II, do Centro de Humanas, estudantes militantes reivindicaram o direito de fumar maconha nos corredores e até mesmo na sala de aula, alguns tendo passado semestres inteiros a entrar e sair das salas para fumar um beck e retornarem “lombrados” para assistirem às aulas. Como professor, defendo a descriminalização das drogas, pelo que de nefasto representa sua criminalização e efeitos inaceitáveis de encarceramento de pessoas por políticas que o Estado brasileiro precisa repensar, mas não assumirei nenhum compromisso com militantes e movimentos sociais de fazer apologia a drogas, nem seu consumo na Universidade. Já experimentei algumas drogas. E importante tê-lo feito, pois, conhecendo-as posso dizer que todas fazem muito mal. E, com o compromisso ético de formar jovens com responsabilidade, digo a todos eles, e digo também em sala de aula: não usem drogas, se resolverem experimentar, não se permitam escravizar por nenhuma delas. Todavia, isso é tomado por militantes nas Humanas como “conservadorismo”. Mesmo o uso da marijuana, erva que pode ser utilizada para fins recreativos e médicos, sabe-se que seu uso demasiado não é saudável, como saudável não é ser alcoólatra.  Mas esses estudantes encontram apoio em certos professores que, usuários de drogas, mas não pesquisadores das drogas (e isso é um outro assunto! E viva a liberdade da Universidade para pesquisas sobre toda e qualquer coisa ou tema), aqueles, usuários, saem fazendo a apologia e até levando seus traficantes-mor para dentro do Campus para a venda de drogas a estudantes. O setor II conhece um deles que passeava livremente pelos seus corredores!
Certos militantes sequer estão ali para verdadeiramente estudarem. Alguns que passam anos matriculados na graduação sem nunca concluírem os seus cursos, regressando em períodos diferentes, com novas matrículas, para o puro objetivo da militância política. Outros, com profundo desprezo pela teoria, pelo conhecimento, estudantes relapsos, buscam afirmar-se por meio da retórica política rasa, e pretendem ainda a subordinação de professores em sala de aula aos seus discursos. Alguns que tem a pretensão de ensinar a professores que estão politicamente errados em suas abordagens para assuntos que ignoram ainda, mas todos já “doutores” pela militância cega, pela doutrinação ideológica e partidária, para a qual a Universidade é burguesa, capitalista, sem consideração pelas necessidades das maiorias ou minorias, numa total generalização, negadora de todas as contribuições que a Universidade, no Brasil e em diversos países, tem dado ao desenvolvimento social, econômico e humano, na consideração de diversos assuntos e problemas, por meio de suas pesquisas, estudos. No CCHLA da UFRN, são diários os relatos de professores que sofrem agressões de estudantes a propósito até mesmo da abordagem científica dos assuntos. Alguns professores, por medo, se deixam chantagear, tornam-se refém do populismo político que os encarcera na chantagem vil de “não serem queimados pelos estudantes”. Outros professores há, mas uma minoria, que, usurpando a função de professor, não estando na Universidade como professores mas como militantes de partidos ou movimentos sociais, mas tipos intelectualmente nulos, somam-se aos estudantes militantes para o proselitismo político, para o rebaixamento das ciências humanas, eles próprios professores sem pesquisa, sem produção intelectual, vampiros da insuficiência intelectual de certos estudantes, pelo que se aproveitam para a sua legitimação como “críticos”, “revolucionários”, comprometidos com os movimentos sociais. São estes que, não tendo conteúdos para ministrar, alguns que em qualquer conversa se tornam porta-vozes do vexame intelectual, ocupam-se de, em sala de aula, não dar verdadeiramente aulas, passando o tempo na conversação frouxa, descabida, desrespeitosa com a maioria daqueles estudantes que ali estão desejos do saber. Mas, claro, são professores que usam das pseudopedagogias libertárias ou democráticas em que eles não precisam dar aulas, pois são os estudantes que dão a aula, são democráticos o suficiente para abrirem mão de uma tarefa para a qual, na verdade, não se preparam nem intencionam se preparar: o negócio é fazer política, formar militantes, a Universidade que se dane! Ela é burguesa, ela é capitalista, ela não tem compromissos com os mais pobres…. então, nada de ensino burguês, tradicional, nada do ensino da ciência. Vamos politizar!
Pois bem, não sabem (ou sabem?) eles e seus seguidores estudantes que o que fazem é destruir a Universidade, ajudando ao projeto daqueles que, reacionários, não querem ver a educação para a ciência conduzir jovens para um patamar superior de conhecimento, para sua desalienação, para sua autonomia, e, com isso, emancipação da sociedade. Preferem o achincalhe e a promoção do desprestígio da ciência e da Universidade porque não sabem fazer outra coisa. Mas, ontem, como não utilizo esgoto para me pronunciar, amigos em enviaram várias das coisas mentirosas que circularam e pude ver que, entre outros, lá estavam certos tipos, professores da UFRN, pousando de feministas, defensores das mulheres, apoiadores de lutas sociais, mas que boa parte da comunidade universidade os reconhece como assediadores sexuais de alunas e professoras, chantagistas e aproveitadores da vulnerabilidade de mulheres bolsistas. Que somente ainda não foram processados por medo de alunas e professoras de denunciar um gângster. Outro, que escrevia suas bravas, um ladrão do dinheiro coletivo, amplamente denunciado dentro da UFRN, um outro, suspeito de compra de equipamento para movimento social com dinheiro da UFRN, e mais outros tantos cujas práticas como professor não permitiriam que pousassem de bacana. Mas, certamente, muitas pseudofeministas (e não as verdadeiras feministas que me conhecem) ficaram muito alegres e vibrantes com a solidariedade do assediador de mulheres que ontem manifestava-se do seu esgoto, tal como uma ratazana.
Recentemente, também pelos esgotos das ratazanas, colega meu da ciência política teve tentativa de destruição de sua reputação, acusado de mentiras no desempenho de membro de uma banca de concurso para professor no nosso departamento. Os detratores respondem ação na Justiça. E mais recentemente ainda, três colegas foram agredidos por meio de áudios de Whatssap e em postagens em facebook por candidata insatisfeita com sua reprovação em seleção pública de bolsa de PNPD/CAPES. A dita cuja candidata chamou em postagem pública o coordenador da Pós-Graduação de Ciências Sociais de “escroque” e de adulterar de resultados imaginados. Ora, chegamos ao ponto que reprovação em concurso não é mais algo esperado por candidatos? Então, todos que se inscrevem terão que ser aprovados? O reprovado vai ter direito a agredir e caluniar as bancas? A Universidade, até aqui, não defendeu meus colegas, em nota pública, e não tem feito em nenhum caso, deixando a todos nós professores sem a retaguarda de sua defesa, inclusive no âmbito jurídico.
Eu, como muitíssimos outros colegas, construímos a Universidade brasileira com o compromisso de fazer dela um centro de excelência de produção do saber teórico-filosófico-científico e de formação de estudantes em alto nível. Minha história de produção intelectual é pública, basta que se veja tudo o que há registrado em e sobre o meu nome em diversos meios hoje disponíveis. Minha honra e autoridade moral e intelectual não será destruída por um bando de nulidades intelectuais, desonestos e covardes morais e políticos, sem espinha dorsal, curvados a todos os populismos políticos que pressionam a Universidade na tentativa de vê-la naufragar na sua desmoralização total e na sua destruição. A Universidade, já escrevi diversos artigos e um livro sobre o assunto, é uma das mais belas invenções humanas, e um bem social que precisa ser preservado. Mas, é fato, que pode, se deixarmos, ser destruída por aqueles que, na desfaçatez, falam como se fossem seus bravos militantes, mas que mais não fazem que uma caricatura de produção do conhecimento, que mais não fazem que usarem do privilégio de altos salários (que são os nossos! O menor 10 mil e o maior 20 mil… e isso é preciso que a sociedade de baixos salários, que é a nossa, saiba! E muito obrigado aqueles que divulgaram o áudio com minha fala em sala de aula: ela é uma fala em defesa da valorização da universidade pública brasileira, mantida pelos impostos sociais, retirados dos rendimentos de todos, alguns que sequer têm seus filhos ali… mas certos, que ali estão, sequer a valorizam e valorizam seus professores) para ações que não correspondem a contratos de dedicação exclusiva. Professores há na universidade que, com contratos de dedicação exclusiva, o que eleva nossos salários, entram e saem da instituição sem qualquer trabalho de pesquisa ou extensão. O pouco que fazem é ministrar aulas porcas, que em qualquer universidade no exterior não permaneceriam um mês na instituição. Na sociedade de baixos salários que é o Brasil, em que 66% da população tem renda familiar de até apenas 2.500 reais, professores universitários ganham salários que faz que estejamos numa faixa de apenas 13% da população. Porém, certos professores e certos estudantes não enxergam isso como algo a valorizar.
 A UFRN tem políticas de amparo a estudantes
Outra mentira difundida como verdade é que a UFRN não tem programas de amparo e assistência estudantil. Há, sim, diversos programas: bolsa creche (aliás, a aluna do caso não faz uso dessa bolsa por qual motivo?), auxílio moradia, auxílio alimentação, residência universitária, bolsa de iniciação científica, bolsa de monitoria, bolsa PET, entre outros exemplos. Se a UFRN não tem uma creche, certamente não é por falta de desejo de seus dirigentes atuais ou anteriores. Alguma razão orçamentária deve existir para tal. Mas o que não interessa a militontos (não é erro de digitação, é isso aí mesmo: militontos!) saber. São os mesmos que acham que o Estado brasileiro tudo pode e deve assumir, sem cálculos, sem planejamento e mesmo sem as condições dadas para tal. Luta por creche? Justíssima! E não é uma luta apenas de mulheres. Mas de homens, gays e lésbicas que têm filhos! Mas, até aqui, em todos os meus anos na UFRN, não vi nenhum movimento ou entidade levantando a bandeira da creche! Não vi nenhuma luta consistente sobre tal. Mas não se pode transferir para a administração de cada professor, em sala de aula, problemas estruturais cuja natureza requer outro tratamento. Imagine-se termos, como professores, que se haver com todos as demandas particulares de estudantes em horário de aula?!
Todos e todas aqueles e aquelas que foram meus alunos sabem bem da qualidade de minhas aulas, e sabem também do meu respeito e estima pelos estudantes. Meus orientandos de graduação e pós-graduação sabem bem como, com eles, construo o conhecimento. Aqueles que ontem estavam nos esgotos sociais acusando-me de “autoritário” deveriam assumir a decência de frequentarem minhas aulas, palestras, seminários. Ou ter a coragem de ir ao meu gabinete pessoal na UFRN para conversar diretamente comigo e, com isso, perceberem o quanto a desonestidade e propósitos políticos vis, orquestrados por partidos políticos da cidade e quadrilhas políticas de conhecimento nacional, que alguém como eu tem coluna vertebral ereta, que não se curva a populismos nem a chantagens políticas, e que não se abala com acusações de mentirosos e mentirosas que se comprazem na baixeza para ataques políticos cuja valor e dimensão é da monta de um invisível grão de areia! É também de conhecimento público o meu empenho em defesa de estudantes, em todos os tempos, submetidos a violências por certos professores. Em diversas situações, auxiliei alguns deles com atos públicos e políticos ou no acompanhamento do desconsolo emocional, de muitos modos protegendo-os de mais violências. Poderia fazer pública a lista destes estudantes, mas, para protegê-los em sua intimidade, evito de fazê-lo.
Não me cansarei de repetir Karl Jaspers: “Se a universidade naufraga, a sociedade e o Estado naufragam juntos”! Estou no navio da Universidade, com muito mais colegas, para evitar o seu naufrágio e para mantê-la viva, autônoma e livre de qualquer subordinação ignorante! E venha de quem vier!
Carta Aberta ao Prof Alípio de Sousa Filho,
Como egresso da UFRN, sempre fui um admirador do seu posicionamento acadêmico e político. Por isso, foi com profundo estranhamento e tristeza que eu tomei notícia dos recentes acontecimentos, em que você expulsou e repreendeu uma de suas estudantes por estar em sala de aula com a filha.
Uma vez que você tem dado aulas sobre gênero, você sabe melhor que muitos (embora talvez não tanto quanto ache), que homem não é feminista. Ele não deve tomar para si uma luta que é das mulheres. Mas ele tem o dever de ser anti-machista. Sabendo do que ocorreu, portanto, é minha obrigação intelectual lhe escrever.
Na verdade, a expulsão já seria algo suficiente para motivar minha carta, mas quando eu ouvi o áudio (que você agora diz ser “maravilhoso”, em reportagem do G1 sobre o episódio), eu fiquei francamente estarrecido. Não apenas com o episódio em si, mas com a precariedade dos argumentos que você tentou utilizar para se defender, que não condizem com as credenciais que você mesmo faz questão de ostentar. E pelo fato de você não ter aproveitado tal oportunidade para se desculpar e reperar o episódio.
Em primeiro lugar, você citou Harvard, Cambridge, Oxford, e universidades “na Europa”, como instituições onde mães não levariam suas crianças para as aulas. Chegou ao ponto de mencionar seu salário, de 20 mil reais, que é praticamente 20 vezes o salário médio de 60%+ da população brasileira, como um exemplo do respeito “moral” que os estudantes devem ter pela instituição. Pois bem, se nessas instituições as jovens mães não precisam levar seus filhos, é porque elas têm mais recursos e auxílio institucional! A sua incapacidade de perceber a relação óbvia entre esses dois dados é absolutamente chocante.
Para citar as universidades britânicas, qualquer estudante/mãe recebe até 600 reais (£159.59) por semana, por filho, como ajuda de custo (o ‘childcare fund’ custeia 85% dos custos das crianças, a menos que as mães tenham outros meios). Aliás, pais que sejam estudantes tem direito a mais 6 mil reais (£1,508) por ano para gastarem como bem entenderem. E não estamos falando nem do direito a habitação (‘housing support’) ou da política de distribuição de renda (‘benefits’). E você vem nos falar em 100 reais que a UFRN oferece em chamadas anuais?
Aliás, basta consultar a internet para saber que os ricos (para os parâmetros europeus, veja lá) ficam com 80% das vagas em Oxford e Cambridge, que você cita como referência. Olhe a seu redor, Alípio, você não está (nem esteve) em Cambridge, e é constrangedor que eu tenha que dizer isso.
Mais além, você não fala pelas instituições estrangeiras que cita, uma vez que não leciona nem atua nelas. Portanto, o argumento de autoridade é extremamente frágil. No entanto, como a minha experiência nas mesmas é muito mais ampla que a sua (embora você goste de medir seu prestígio referindo-se à essas universidades, para mim é constrangedor e só o faço para fins de refutação), posso afirmar tranquilamente que se você reagisse contra uma mãe e sua criança em sala de aula, como o fez na UFRN, em uma universidade européia (sobretudo no Reino Unido), você seria demitido – não importando a imagem que você faz de si mesmo, sem grande modéstia. É absolutamente impensável para um professor britânico se dirigir aos estudantes com os termos que você utilizou. Impensável.
Quão difícil teria sido buscar uma solução junto ao departamento, procurando informações que pudessem ajudar essa mãe? Se não houvessem, quão melhor seria aproveitar essa oportunidade e, junto às estudantes, pleitear soluções? Quão difícil seria conversar com outras alunas e professoras mães que já passaram por situações parecidas, ou pedir a interferência delas? O salário que você recebe não merece esse esforço?
Moralmente—já que você quis falar em moral—uma mãe solteira, periférica, que batalha para fazer seus estudos e precisa levar sua filha para uma universidade pública, estão muito, mas muito mais além dos limites do seu suposto desconforto que, aliás, não tem nada a ver com o bem estar da criança, sejamos francos. Aliás, é de espantar que você levante uma questão moral para discutir um fenômeno obviamente sócio-econômico—parece subitamente esquecer a natureza de sua própria disciplina e de seu rigor intelectual (uma vez que seu posicionamento é diametralmente oposto àquilo que escreveu). Convém ainda que você não use seu prestígio para tentar dar um verniz acadêmico a proposições falsas: sou filho de um professor universitário que me levou às aulas e isso não teve o menor impacto negativo no meu desenvolvimento cognitivo – muito pelo contrário. Ne ultra crepidam, Alípio!
Ameaçar processar essa mãe, utilizar seu prestígio para destruí-la (em uma instituição em que alguns professores estão habituados a mandar e desmandar em seus pequenos e irrelevantes feudos), é de uma misoginia grotesca e indesculpável—e nos países que você cita, essas ameaças caracterizam crime (bullying e harassment). Transcrevo com horror algumas de suas palavras: “ela encontre uma rede de solidariedade para cuidar da criança. Não consegue essa rede de solidariedade? Repense sua vida. Não tem que estar fazendo Ciências Sociais, não tem que estar estudando na universidade. Você só faz isso se tiver condições. Agora não vai impôr à instituição coisas que não são assimiladas pela instituição (…) 'ah, eu sou pobre, não tenho'. Problema seu, a universidade não tem problema com isso, se vire”). No quê esse seu discurso supostamente “meritocrático” mas que se mostra classista e machista, diferencia-se do discurso de um Bolsonaro? Leia de novo suas palavras e reflita sobre isso. Não percebe que o mesmo pode ser utilizado contra você? Por exemplo, com o investimento que o governo faz no seu salário, ar-condicionado e internet, você deve ser obrigado “moralmente” a não falar mal do governo? Faz sentido, isso? Por medo da resposta, já adianto: não, não faz sentido. E por uma questão de civilidade, eu vou lhe poupar de dizer quem é que eu acho, neste contexto, que não deveria “estar fazendo Ciências Sociais”.
Se a moral e a universidade pública realmente lhe importam, se você quer mesmo fazer jus ao seu salário de 20 mil reais, o mínimo que você pode e deve fazer é se desculpar publicamente com essa mãe e buscar reparar esse episódio vergonhoso com um empenho pessoal em tratar da questão de mães e filhos pequenos dentro da instituição—incluindo a elaboração de um pequeno manual/cartilha para explicar a questão das crianças em sala de aula para professores e alunas.
Como a UFRN não é dada à auto-crítica, e os professores frequentemente se protegem por corporativismo, terei que ser uma das vozes isentas a te dizer o que seus alunos talvez tenham medo, pelo abuso sistemático que sofrem nesta instituição. Tuas credenciais como militante e estudioso são irrelevantes para te defender de ter agido de maneira misógena, mas elas me dão esperança de um gesto seu, para transformar esse lamentável episódio em algo positivo para essas mães.
À mãe que foi expulsa da aula, eu quero dizer que acredite nos seus estudos. Que não deixe esse triste episódio te abater: confie na sua força e no apoio de outras mulheres. A universidade é o seu lugar, e o que aconteceu só prova a importância que você—e a sua filha—tem nesse espaço (e em todos os outros espaços).
Feliz Dia da Mulher,
Pedro Germano Leal
(francamente, não tenho o menor interesse em usar meus títulos e filiação profissional para validar algo que eu digo)

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