sábado, 24 de março de 2018

ESSE AMOR NÃO EXISTE NA RUA DO CAJUEIRO (Ramilton Marinho)

Texto envolvente do Professor Dr. Ramilton Marinho, contista conterrâneo e bom hipnólogo também por via escrita. Nada menos que a nota máxima! - Gilberto Cardoso dos Santos


ESSE AMOR NÃO EXISTE NA RUA DO CAJUEIRO

Quando chegamos á rua do cajueiro era dia desde o outro lado do mundo e as meninas, em trajes civis, ao ouvirem Lindomar Castilho choravam por um amor que ali nunca poderia existir.
Lá fora viam passarem arrastadas, pela mesma estrada do cemitério, horas longas e desertas, pois quase tudo ali era mato, fazendo aquela rua de casinhas desiguais parecer um oásis melancólico sob o peso inclemente do sol, afugentando qualquer freguês de bom senso, com exceção de seu Policarpo que, ao caminho do roçado, vez por outra e sem previsão, rasgava os pneus do jeep, descia apressado, deixando a porta do carro aberta, o motor soluçando, para ir à procura da primeira mulher que o conduzisse a um alívio rápido:
- Ta fazendo o quê menina? - perguntava jogando o chapéu na cadeira e abrindo a braguilha.
- Nada não, seu Policarpo – respondia.
- Então vamos pra p..., vamos pra p...., vamos pra p... – ordenava enquanto a arrastava, submissa e suada, ao quarto vazio.
Portanto, a impressão que se tinha durante o dia era a de que a realidade dependia fundamentalmente da rotação do planeta. Pois bastava a noite se anunciar no horizonte para a rua do cajueiro mergulhar em outra dimensão, com a sua aura de luz difusa vibrando ao som das radiolas.
Na sala da casa de Elvira os casais dançavam como se fossem namorados e, em coreografias perfeitas, Zé Fabilicio deixava os seus passos se perpetuarem até quando não mais houvesse música pra tocar; enquanto no balcão bebiam solitários aqueles cujo erro de morte foi o de se apaixonar por uma mulher da vida. Na mesa da cozinha serviam café e falava-se sobre coisas do mundo real, mas mesmo essas banalidades cotidianas – talvez pelo efeito dos perfumes baratos, dos brilhos de mentira, da fumaça dos cigarros e do fulgor dos sorrisos levianos – ganhavam um puro argumento de irrealidade.
Sem dinheiro, nós ficávamos do lado de fora observando e prevendo o movimento da noite. Talvez o macho de Dorinha ainda chegasse a tempo de arrastar o camarada de cima dela? E quem sabe, Edileusa, embriagada e solidária, viesse pra nos mostrar os peitos em troco de nada? Provavelmente irrompesse o delegado Tranca-rua para determinar a lei do silêncio e cobrar o seu soldo de cafetão da lei? Será que no quarto tosco e sem janela a Gringa, vestida apenas da sua nudez sobrenatural, já provocara no cliente uma irreprimível vontade de chorar? É possível que aquele cliente novo e obstinado já estivesse aturdido com Maria das Virgens, por lhe aparecerem mais roupas debaixo de cada peça retirada, até nunca mais ficar nua? E Nice Fogaréu - cujo sexo em brasa queimara mais ilusões que pecados - já teria deixado em chamas o colchão novinho? Porventura, Rita do Bofete ainda estaria sóbria e mansa ou, tempestuosa, já arrastava a peixeira anunciando emboança?
Com inveja, vimos Carlos Damasceno – sedutor precoce e perito em arrastar da gaveta notas de cruzeiro na bodega do pai - atravessar a rua de mãos dadas com Rosa dos Prazeres, uma negra nova de alma velha, descendente do reino da Núbia e, por artes do destino, estabelecida num cabaré em Barra de Santa Rosa. Ela era a dona do corpo mais bonito e do amor mais prodigioso que um cristão honesto podia experimentar sem desejar a morte. Algo que não ocorreu a nenhum de nós naquela época foi perceber que nos braços daquela negra deslumbrante os fregueses perdiam toda noção do mundo; de forma a não perceberem quando as tempestades chegavam inundando tudo com uma avalanche de sapos da lagoa e peixes lunares a flutuarem pela luz molhada dos postes; a não ouvirem os tiros, nem as brigas de soco e de faca debaixo do cajueiro; a não se renderem a lei do silêncio estabelecida pelo delegado e por sua trupe de guardas-noturnos desanimados.
Para nós, contudo, o mais desejado, e ao mesmo tempo temido, eram as novas meninas, surgidas no ruge-ruge das segundas-feiras com as suas blusinhas tomara-que-caia de cores fortes, com os seus peitinhos de limão e um senso de liberalidade mais elástico do que as interdições ali impostas; mas também pressagiando as mais cruéis doenças do mundo, sobre as quais nenhum controle dispúnhamos, além de um limão antes, um caldo de cana depois, e uma oração apócrifa de São Cipriano recitada durante o calor do gozo fatal.
Por isso, e pela escassez monetária, acabávamos ficando mesmo com as mais velhas, mas também as mais sábias e pacientes. Com elas, era possível desvendar os segredos, os gostos e as doenças de todas as outras; enquanto aprendíamos as regras do Kama Sutra, cujos princípios não se transmitiam apenas por dinheiro, mas por pura fé na humanidade. E, complacentes, ouviam nossos desabafos sobre os namoros acabados e paixões desfeitas, além das queixas contra o governo de merda. Porém, todas elas sempre negaram que o sargento Tranca-rua fosse um agente da ditadura. “Ainda que fosse da ditamole” diziam num misto de inocência política e sabedoria da vida real - aquelas mulheres tão fáceis de compreensão e ensinamentos.
Cada um de nós já tivera há pouco o seu momento inaugural, ansioso e perdido, na penumbra vermelha de quarto mágico, vendo a dama dos sonhos com o domínio de uma vocação ancestral, abrir o lençol de flores tristes sobre a cama e nos orientar, enquanto se despia, para manter a calma, retirar os sapatos e os óculos antes de subir ao altar do leito, e alertar que aquela jarra e bacia de ágata não eram próprias para lavar o nosso rosto, mas para higiene das suas partes íntimas e, por fim, cuidar para os carinhos parecerem reais e os gemidos quase verdadeiros, pois deles nos tornaríamos crédulos reféns até o final das nossas vidas.
E estavam certas. Daí por diante ficávamos irremediavelmente presos aos prazeres secretos da rua do cajueiro. Algum de nós já nem conseguia jantar e chegava à boca da noite mastigando um pão; outros ainda se permitiam um arrodear na praça, jogando conversa fora no coreto, e outros esperavam até as dez horas, tempo suficiente para deixarem em casa a namorada virgem e atormentada. Todavia, diariamente, juntos ou separados, passávamos nos esgueirando pelas ruas paralelas, atravessávamos os atalhos no meio de mato, agave e chiqueiros de porcos, para mergulhar no mundo magnífico que só tinha tradução nas músicas de José Ribeiro e Bartô Galeno.
Na maioria das vezes, nos reuníamos em rodas animadas para observar, comentar e aguardar o desenrolar de tudo que fosse e não fosse previsto naquela zona repleta de incertezas; mas também compartilhávamos bebida e política, embriagando-nos de cachaça e utopia em mesas eternas nas quais, em tempos de casa fraca, as meninas chegavam pra nos fazer companhia. Contudo, o mais esperado era, com o saldo do dinheiro ajuntado, poder regatear horas românticas de um amor alugado.
Na madrugada de um junho frio e enevoado eu havia ficado até mais tarde gastando os últimos centavos em doses baratas ao pé do balcão, repetindo mais uma vez o disco novo de Amado Batista, talvez para abafar, do outro lado da cortina, os gemidos da princesa de cabelos pintados, olhos límpidos e sorriso triste, por quem já havia gasto, em noites sucessivas, tudo que era possível ter e tomar emprestado, além de um pingente banhado a ouro, presente de aniversário, trocado apenas por um amasso. Com juras impossíveis e promessas inalcançáveis, julgava-me irrevogavelmente preso ao mais verdadeiro e mais caro amor da minha vida.
Perto do amanhecer, Iracema serviu uma última dose, grande o suficiente para que enquanto eu a bebesse ela pudesse lembrar a tragédia do soldado maldito que, pela traição anunciada, saiu matando gente e animais de rua, para ser capturado por um falso grupo festivo, tocando fole e bebendo na boca da mesma garrafa, na carroceria de um caminhão que o levaria para o último destino da morte completamente desfigurado. Fez rememorar sobre o jovem amigo, cujo orgulho ferido o fez atirar por vingança entre as pernas da amada e, por graça da intercessão de São Valentim e de uma pontaria danada de ruim, ficara livre de maiores padecimentos. Recordou dos velhos agonizando no choro de dor e de prazer apreciando as suas jovens amantes consumidas por carinhos que já não eram mais os seus.
E assim, depois de uma longa pausa, com gestos maternais e uma convicção quase triste, ela recomendou:
- Pare de encher os chifres de cana, porque esse é o único amor que nunca vai existir na rua do cajueiro.
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* Minha homenagem aquelas meninas, mulheres, guerreiras da paixão e do tempo; mães secretas de todas as dores e alegrias e donas absolutas do único amor que deveria existir sempre em todos os lugares e não apenas na rua do cajueiro.

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Ramilton Marinho Costa e Doutor em Sociologia e Professor Titular da UFCG

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