A PEDRA NO CALCANHAR ENSAPATADO

 

A PEDRA NO CALCANHAR ENSAPATADO

A roupa está na máquina, isso também é fato, mas o que está perturbando mesmo é um grilo cantando. Jamais imaginei que ele pudesse subir até o vigésimo andar só para expressar seu barulho de filme de terror. Já o procurei por todo canto sem obter sucesso. Quando chego perto do som, ele para de cantar. Ao me afastar, o bicho continua. 

Ligo a TV enquanto vou preparar algo para forrar a barriga, e ele lá cricricando. Se eu tivesse uma projeção de voz proporcional ao grilo, não precisava de microfone. Pela manhã quando saí estava tudo na paz. Será que veio voando?, deixe eu ver se grilo voa. "Embora tenham quatro asas, os grilos-domésticos raramente voam. Na verdade, preferem correr ou saltar. Com as suas patas podem saltar acima dos 30 centímetros! No entanto, as asas têm uma função importante: os machos esfregam as asas dianteiras uma na outra para atrair as fêmeas," encontrei essas informações aqui no Google. 

Ao acessar o computador do quarto, fico escutando o cri cri cri vindo da sala, ou será que está na varanda? Pior são as fêmeas que se sentem atraídas por uma coisa chata dessa. Se eu fosse uma grila preferia me amancebar com uma barata. Os outros insetos podiam ficar falando mal do primeiro caso conhecido de lesbianismo no mundo insetífero, mas aceitar namorar com um bicho desses,  jamais.

Se o humano pulasse o tanto dele não precisaríamos de transporte público, já que a cada salto teríamos, aproximadamente, cinco quilômetros de avanço. 

Leonardo da Vinci, além da Mona Lisa, pintou grilos. Ele era um grande observador da natureza, porém resta saber se ele ficava irritado ou não com essa estridulação. Esse é o nome do canto do grilo. Fico a pensar quem foi o sacana que juntou as sílabas e disse que esse barulho irritante ia assim ser chamado. Deve ter sido um desocupado. 

A máquina para de lavar a roupa e estendo no varal por volta das nove da noite. Nem tentando fazer os afazeres domésticos eu consigo desprender-me dessa chateação. Acho que vou à portaria denunciá-lo por estar perturbando o silêncio público. É melhor eu ligar para o cento e noventa. Alô!, polícia militar. Amigo, gostaria de denunciar um grilo. Dá para vocês mandarem uma viatura acabar com uma perturbação do sossego público de acordo com a lei do meio-ambiente, etc, etc. Se o senhor não parar de passar trote, nós vamos aí conduzi-lo para a delegacia de plantão zona sul. 

É nisso que dá a pessoa contar com a proteção do Estado. Um dia ele se vira contra. Aprontei o crepe e o coloco em cima da mesa. Gosto de crepe com recheio de banana, exatamente como o que está à minha frente. A primeira mordida é acompanhada pelo barulho já citado. Não consigo engoli-lo. Parece que estou mastigando perna de grilo. Cuspo fora e nem água bebo. Que inferno! 

Antigamente eu achava chato o barulho de sirenes que ficavam transitando lá embaixo, só que eu era feliz e não sabia. As ambulâncias passam e levam suas sirenes juntas, entretanto o grilo vai permanecer por dias se eu não lhe encontrar antes de enlouquecer. 

Lembro-me de um outro caso parecido. Eu dormia em um apartamento do primeiro andar e um exemplar desses ficava gritando no térreo. Foram três dias de buscas incessantes até encontrá-lo por trás de uns tijolos. Durante o dia estava de boa. Eu esquecia, porém à noite... 

Eu já tenho trauma com esse negócio de grilo. Na literatura temos a história do Grilo Falante. Ele até que está bem na foto da capa. É verde, usa guarda-chuva e cartola, é simpático... mas na realidade... criiiiiiii... Por isso é que dizem que uma pessoa é cri cri quando ela é chata. Acho que estou me tornando chato com esse lenga-lenga de grilo. 

Já sei! Vou apagar as luzes e me aproximar. Não deu certo. Ele me viu primeiro e parou de cantar. Ligo a lanterna do celular. Tem uma coisa preta nos trilhos da porta de vidro. Ah, rá!  É ele. É um grilo adolescente. Bem pequeno, mas com  um potencial de dar inveja a Luciano Pavarotti. Uma chave de fenda vai ser a arma utilizada. No mundo deles, sou conhecido por Serial Killer. 

Espeto-lhe, mas não é um simples espetar. É um ato de vingança. Um ato movido a ranço no mais alto grau. Coloco toda minha ira na prática do crime. Despedaço-o sem o menor ressentimento. Ah, filho da mãe, ainda vai perturbar?, falo com ele como se fosse a maior ameaça à humanidade. A espuma aparece no canto da minha boca. Eu espumo igual a cachorro doido. Bato mais vezes com a ponta da chave de fenda estrela. Não é uma chave de fenda qualquer. É daquelas que perfuram com mais facilidade. 

Pernas pra lá, abdômen muito mais pra lá. Pego um papel toalha como se eu pegasse um caixão de defunto. Coloco as luvas de pedreiro sujas de argamassa e que fedem a mofo por dentro por eu nunca tê-las colocadas ao sol. Recolho os restos mortais do bicho. Embrulho com desprezo e ódio no coração que bate acelerado. Deposito-o na lixeira e vou dormir como se nada tivesse acontecido. Será que sou psicopata?

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02.05.2023 - 01h51