quinta-feira, 2 de junho de 2022

PLANO ABORTADO - Heraldo Lins

 


PLANO ABORTADO

O suicida, por orgulho, disfarça para não ser notado que quer morrer. Na parte mais alta, parou “dando um tempo”. Havia estudado medicina, entretanto, não ficaria com remorso em afogar todo o seu trabalho naquelas águas claras, cinquenta e cinco metros abaixo. As horas perdidas em trabalhos estafantes, momentos nos hospitais, pesquisas, plantões, tudo isso seria, junto com ele, destruído. Tinha consciência que estava fazendo um ato de cortesia para a angústia, as dúvidas e os mal-estares que sempre sentia. Este mundo sempre foi um carrasco para ele, pensava enquanto se posicionava junto à mureta de proteção.

Veio-lhe à mente que poderia ganhar dinheiro vendendo os direitos autorais para quem quisesse assisti-lo fazer o que pretendia fazer. Para que dinheiro naquele momento...? Pensou no medo que muitos dizem sentir da morte. Ele não sentia, pelo contrário, sempre quis abraçar essa viúva que vinha sorridente levar candidatos inexperientes. Ele não. Era bem experiente. Certa vez havia contratado uma funerária para forjar a própria morte, com roupas mortuárias, ladainhas e procissão, inclusive, na cova havia ficado por algumas horas. 

Dessa vez não. Seu propósito era sair calado, sem muita algazarra de rezas ou choros. Pelos cálculos de médico cirurgião, sabia que a queda estouraria seus órgãos internos e que ele jamais escaparia. Como seria a tão esperada eternidade...? Não iria deixar nada por escrito, da mesma forma quando do seu nascimento há quarenta anos. 

Como nunca entendeu o que sentia ao dormir, durante o sono e ao acordar, resolveu acabar com as dúvidas de uma vez por todas. Pareceria absurdo relembrar, em ato contínuo, momentos difíceis passados há muito tempo. Se pudesse trocar suas memórias, todas iriam a leilão, principalmente, as que causavam amarguras. Se não houvesse compradores, gratificaria a quem pudesse levá-las embora, já que os remédios nunca fizeram efeitos. 

Antes de se dispor nessa jornada de rio abaixo, planejou furar um olho para sentir como é perceber a escuridão com o esquerdo cego. Um pouco de sangue é estancado com o material que trouxera para o momento. Novamente utilizando anestesia, corta as orelhas. Faz um selfie e se observa sem orelhas e depois sem a ponta do nariz. Com uma das mãos, consegue decepar o braço direito. Emparelha as orelhas, o nariz e o braço ao lado dos instrumentos cirúrgicos. Com uma máquina portátil, serra as duas pernas. Em seguida, joga tudo no rio. Ensanguentado, procura uma abertura entre os pilares da ponte para se jogar. Ao tentar, é agarrado por um salva-vidas. 

Dois anos depois, vemos aquele resto de gente em cima de uma cama no sanatório municipal pedindo pela eutanásia. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02.06.2022 — 10:42



2 comentários:

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