quinta-feira, 10 de março de 2022

SEU ANTÔNIO - Heraldo Lins

 


SEU ANTÔNIO


Enquanto ela batizava o filho, havia uma outra mulher esperando para o mesmo ritual. Os convidados permaneceram por perto para só depois irem para a recepção, distante duas cidades. No caminho, uma tempestade os pegou desprevenido e deixou, no gelo, muitos sepultados junto ao avião que teve que fazer um pouso forçado. O aeroporto estava longe, motivo maior de aterrissarem no meio da neve deslocando uma das turbinas para o desfiladeiro ao lado. 

Passaram a comer a carga durante trinta dias de torrenciais terríveis. À meia-noite, tiveram que abrir as portas em busca de água. Uma luta medonha para desenterrarem-se. Nessa escavação encontraram um urso hibernando, e tiveram carne fresca para mais uma semana. Felizmente a neve foi derretendo e onde fazia frio passou a ser insuportável de calor. No entra e sai da aeronave, acontecia, nos banheiros e cabines fechadas, as maiores traições. Quem queria, transava com quem estava disposto. Uma verdadeira suruba em pleno descampado. Sabiam que iam morrer, então, nada mais agradável do que morrer fazendo amor. A busca no departamento de cargas era trabalhosa. Quem conseguisse mantimentos tinha direito a escolher com quem dormiria. A luta pela sobrevivência deixou todos sem o mínimo pudor. 

Viva a civilização, diziam alguns quando retornaram ao convívio social. Os inimigos foram abraçados e a vida prosseguiu. 

O avião, depois de descongelado, foi içado por helicópteros para a oficina. Os mecânicos ficaram surpresos em ver uma aeronave tão bem conservada. No local das bagagens, vinham lobos que permaneciam comendo os restos dos humanos que foram pegos de surpresa. 

O homem que passou por tudo isso está sentado em sua cadeira de terraço, relembrando, tranquilamente, aquele episódio traumático. Ele tem um semblante cabisbaixo, sua estima está em baixa, e o dinheiro também. A única coisa que resta é a casa e o terreno do quintal, cobiçado pelas empreiteiras. Já ofereceram trocar sua casa e terreno por apartamentos. Ele tem medo de altura, aliás, tem medo de tudo que seja mudar sua rotina. Às sete toma café, onze, almoça, dezessete ceia. Fica sonhando com a próxima sete horas. O único momento de prazer é feito à mesa. Morando com a empregada, prefere se esconder dela para não trair sua promessa de amor eterno à que foi embora para a eternidade na boca dos lobos. 

Um belo dia resolveram tomar banho a dois. Sua vida renasceu. Ficaram juntos no banho, na dormida e assim permanecem. Seu Antônio deixou a tristeza de lado e continua alegre e bem-disposto. Até voltou a correr. A empregada está grávida. Diz que seu Antônio será um bom pai, depois dos cinquenta, porque pode interligar as duas gerações. Ela não tem vergonha de dizer que, para suprir as necessidades econômicas da casa, faz programas noturnos. Seu Antônio nem se importa. Muitas vezes recebem visitas na casa, e seu Antônio fica ouvindo rádio. As frutas deliciosas aumentaram de quantidade depois que Cíntia resolveu explorar sua beleza interior. 

É uma casa de respeito recebendo homens e mulheres de respeito. Cíntia, também, aceita as mulheres, aliás, preferindo-as. Os homens, ela os recebe com um cachê mais alto. O caixa fica sob a responsabilidade de seu Antônio. Ele pensa até em contratar novas empregadas.  

Através do celular há os agendamentos de horários. Cada um só é confirmado depois que o outro sai. Daqui a meia hora o marido de Cíntia chega, diz seu Antônio para apressar o cliente do momento. Tudo é planejado. Os clientes pensam que estão traindo o marido imaginário de Cíntia tornando o jogo mais interessante. Ela confirma a história e tudo continua lindo. 

Seu Antônio assume o papel de avô de Cíntia onde tudo pode com  a suposta neta. Há outras netas prometidas para chegarem. Já investiram em um terreno vizinho, e é lá que seu Antônio pretende aumentar a quantidade de netinhas. 

Algumas vieram da capital morar em quartos separados da casa. Todas são suas, lindas e safadas. Seu Antônio agora tem várias para pegar carona. Na verdade, vive em um harém sem despesa. Todas são casadas, dizem para os novos clientes. Quando algum quer abusar, seu Antônio fala do suposto marido. Se persistir, convida um trabalhador que está embaixo das mangueiras para se passar por um deles. Chega com roupa surrada, foice na mão e chapéu de couro. Desanima qualquer um que tente achar que o lugar está desprotegido. Assim é a vida de seu Antônio depois do trauma do avião. 



Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 09.03.2022 ─ 10:06



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